Aboiando

A crônica “Aboiando” faz parte do livro Sertão, Seridó, Sentidos. O terceiro domingo do mês de julho foi escolhido como o “Dia do Vaqueiro Nordestino”. Compartilho com você leitor a minha homenagem a essa figura tão importante da cultura do Nordeste.


O vaqueiro veste orgulhoso a perneira marcada pelos estribos e passa as correias do guarda-peito pelo pescoço. Do lado de fora da casa, calça as esporas e dirigi-se ao animal selado.

Verifica se a cilha está bem apertada, segura forte o arção, testando a segurança da sela. Desamarra o cabresto, prendendo-o sob a sela, segura as rédeas e monta com firmeza. Por último, veste o gibão, amarrando o laço e ajustando o chapéu de couro, de abas curtas.

Devidamente protegido pela armadura do sertão, bate a porteira gemedora e entra na caatinga, enfrentando com bravura os espinhos do caminho.

No Seridó, pasto não corre a perder de vista. De difícil acesso, a caatinga fechada atrapalha a visão. O jeito é seguir o som do chocalho do boi fujão e da novilha arisca, no sentido dos bebedouros.

É para lá que segue o valente encourado. Foi assim que os primeiros desbravadores ocuparam o Seridó, seguindo o rastro do gado nas terras para criação.

Uma vez por ano, a apartação reunia os vaqueiros mais destemidos, à procura da rês criada solta nas terras indivisas, oportunidade em que o rebanho era apartado e marcado com o ferro do dono e da ribeira da região.

Depois de fincado no solo, o seridoense passou a plantar algodão. A agricultura desenvolveu-se e cercou as fazendas. O algodão mocó impôs os seus limites, demarcando as terras para a pecuária. O gado passou a pastar em cercados, reunido nas malhadas e batedores.

Da apartação surgiu a vaquejada. O gado no curral, a porteira aberta, um cavalo de saída rápida, uma boa esteira, a cerca a lhe guiar e a mucica certeira: quatro patas no ar!

A festa dos vaqueiros deslocou-se dos pátios das fazendas para os parques de torneios organizados, com currais, brete, faixas de marcação, palanques, cavalos de raça e premiação – de carro, de moto, de casa, em dinheiro. Vaqueiro tornou-se profissional da vaquejada, percorrendo o Nordeste ao sabor do calendário dos eventos.

Nas fazendas, os renitentes preferem continuar a tradição da região, embrenhados na caatinga, aboiando e tangendo boi.

Ao vislumbrar a primeiras reses, emite um som peculiar, monossilábico, repetição de vogal entoada, arrastada… O canto monótono, solitário, atrai a boiada. Trava-se um monólogo de efeito encantado. Seduzido pelo aboio inconfundível, improvisado, o gado segue os comandos do vaqueiro, pondo-se em marcha lenta.

Na calmaria da tarde, trazido pelo vento brando, soa o barulho do chocalho ritmado na pisada do gado. O som aproxima-se. De vez em quando, o chocalho balança fora do ritmo, uma voz exalta-se, repreendendo a rês pelo nome.

O aboio me faz lembrar o final da tarde na fazenda Cacimba do Meio. Ao primeiro sinal da boiada, os mugidos dos bezerros ecoavam até as vacas leiteiras, que respondiam de pronto.

Seguíamos para o curral, de copo em punho, com açúcar e chocolate, levados por Vovô José Bezerra, que comandava a ordenha da tarde, exclusivamente para abastecer a casa grande e despertar na criançada o gosto pelo leite morno, recém ordenhado.

Deixo de lado as lembranças do passado e observo as porteiras abertas, aguardando a entrada do gado no curral, represado para os trabalhos da ferra no dia seguinte.

Antes mesmo do raiar do dia, a coivara mantém o ferro em brasa. O gado no brete, a marcação firme, o mugido de dor, o cheiro de couro queimado espalhando-se no ar. O fazendeiro deixa sua marca. Mais do que nunca o gado carece do aboio acalentador.


Disparada – música de Geraldo Vandré e Théo de Barros, interpretada por Urutaú.

Acesse também: Caminho da infância, Invernada, Permanente robustez e Fazenda em festa.

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