Caminho da infância

O caminho encurtando e o frio na boca do estômago acentuando-se. Silenciosamente, temia não reconhecer o traçado tantas vezes percorrido na infância. Consciência pesada pelos anos de ausência.

Procurei não transparecer a incerteza quanto ao momento certo de largar o asfalto, tomar a estrada de barro e seguir pouco menos de dois quilômetros, na terra seca batida, até chegar à fazenda dos meus avós maternos.

A paisagem alimenta a alma saudosa. De um lado e de outro, a caatinga entrelaçada, despida de folhagem. Nem a tristeza da estiagem afasta a alegria do retorno. Céu anil desanuviando a rocha no alto da serra. O Bico da Arara mantém-se incólume, altivo, sempre pronto a abrigar os andorinhões errantes.

Tudo intacto, exceto o olhar. Este, carente da ingenuidade de criança, ganhara novas visões, por vezes menos encantadas.

No Ingá do alto, desviaram a estrada para trás da casa grande, resguardando a passagem do local de trágica memória onde, em 13 de fevereiro de 1935, Dr. Otávio Lamartine foi morto arbitrariamente pelas mãos da polícia, unicamente por questões políticas.

Os seixos em abundância fazem o carro descer cautelosamente a ladeira. Propositalmente, dirijo devagar, contemplando as construções do Ingá de baixo, carinhosamente armazenadas na lembrança: o grupo escolar, os currais cimentados, o estábulo, os armazéns, a casa principal.

Não precisei abrir a porteira; ela já escancarava a saudade do lugar. Nos limites da casa cercada, os fícus frondosos sucumbiram às secas mais severas, mas as algarobas exibiam os resquícios de verde, adornadas pelos ninhos vistosos das casacas de couro.

Subi os degraus vermelhos da entrada e vi-me pequenininha, fazendo o trajeto inverso; tinha um dedo minúsculo, do tamanho ideal para encaixar no buraco da tramela e abrir o portão de ferro, cruzar o terreiro e ganhar o mundo.

Do lado de dentro, o alpendre, o banco de madeira, o mosaico do chão, as portas duplas da sala, um abraço forte e afetuoso de Sebastiana. Ao meu lado, ela percorreu todos os recantos da casa e resgatou cada retalho das minhas temporadas na fazenda, contando histórias nas quais eu era a personagem principal.

A escada de acesso ao sótão é metade cimento, metade madeira. No andar de cima, o piso amadeirado denuncia qualquer movimento. No baú cheiroso de cedro, as roupas que usara na minha meninice. Na prateleira do quarto de baixo, as panelas de barro em miniatura me fizeram criança novamente, brincando de pedrinhas, tangendo gado de osso, catando ovos no mato, tomando banho de riacho. Faltaram as bonecas de pano, puída pela ação do tempo.

A casa bem conservada parece adormecida, imune à ação do tempo, exceto o relógio cuco na sala de jantar – cansado de tanto marcar as horas. Tudo o mais cuidadosamente preservado pelas mãos de Bastiana, Tio Maurício e Célia. Os armários embutidos nas grossas paredes, o fogão à lenha na cozinha, o banheiro de água gelada. As grandes janelas dos quartos dando para o oitão e o terreiro com suas galinhas poedeiras.

No alpendre lateral, não encontrei o grande viveiro de vovô, nem os alçapões e gaiolas aguardando as suas vítimas. Para minha alegria, hoje os pássaros voam livres pela fazenda. Galos de campina, azulões, rolinhas, rouxinóis, assum preto, concris, cantam uma melodia rara para os ouvidos dos habitantes urbanos. Não vi o canário, tangido de vez do solo seridoense, mas desfrutei do canto marcante das casacas de couro no final da tarde.

As recordações borbotando levaram-me, em pouco tempo, para o espaço muitas vezes visitado. No estábulo, relembrei o gosto agridoce do mel da cana nas cocheiras, alimentando as vacas paridas. No final do corredor, o armazém onde se guardava a torta do algodão, no tempo em que o ouro branco alimentava o Seridó, seu gado e sua gente.

Como sempre fazia, atravessei o curral, de olho no boi manso que me observava curioso, e segui no prumo das cacimbas do rio. No trajeto, senti a ausência das mangueiras frondosas, mas alegrei-me com a caibreira em flor, tingindo de amarelo o cinza da região. Segui os riachos secos de água e talhados de saudade. Nem percebi a mudança de perspectiva. Por todo caminho, as pedras e lajedos quaravam meus sentimentos.

A noite trouxe de volta o sabor da infância alimentada no tempero do fogão a lenha, da coalhada adoçada com raspas de rapadura. Após o jantar, a conversa no alpendre com os moradores relembrando as estripulias de meu avô. Dormi com o coração transbordando de contentamento, estranhando o som do Sertão noturno.

Antes do quebrar da barra, acordei com o canto do galo madrugador. No alpendre, assisti aos primeiros raios do sol, revelando o contorno das serras que circundam o lugar. Uma brisa fria e leve trouxe o cheiro do estrume. Fui até o curral assistir à derradeira ordenha, com a claridade tomando conta.

Após o despertar de todos, fartei-me na mesa do café da manhã. Embebida pelo Ingá, retornei à minha rotina de cidade. Bati a cancela sem passar a tranca, deixando-a aberta para o retorno ao Seridó, Sertão do Rio Grande do Norte. Trouxe comigo um sentimento que não se traduz, sentido oposto da palavra saudade.


Dominguinhos + Hamilton de Holanda + Mayra Andrade + Yamandu Costa (Lamento Sertanejo)

Acesse também: Crianças à beira-mar e Cultura da criança.

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2 comments

  1. Memórias infantis são um sonho adormecido. Encarar a mesma realidade com visão de adulto pode ser ,às vezes,decepcionante. Mas como os seus momentos foram bons,matou a saudade e tudo volta ao seu lugar…

    1. Como diz a crônica, o olhar do adulto ganha novas visões, por vezes, menos encantadas. A visita deu para matar a saudade da fazenda da infância.

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