Camuflagem

Flor do Mulungu

Navegava eu à procura de expedições fotográficas, quando me deparo com as instruções de um workshop sobre fotografia da natureza, no qual são proibidas roupas pretas, vermelhas, brancas e brilhantes. A camuflagem é fundamental para captura de belas imagens no ambiente selvagem.

Em sentido oposto, de imediato penso na selva humana que, a cada segundo, busca as melhores poses para exibição nas mídias sociais. Uma das faces do mundo virtual.

Basta um caminhar na praia, um passeio no shopping, uma parada para um cafezinho ou mesmo degustar uma simples refeição – não precisa nem falar em experiência gastronômica – encontraremos os celulares na busca dos melhores ângulos.

Faces, corpos e nudes expostos em primeiro plano, sem qualquer limite, bastando apenas o acesso ao aparelho eletrônico com câmera e internet. Um clique e as imagens giram o mundo.

Surge o/a digital influencer, disseminando caras e bocas ensaiados, muitas vezes, gestos vazios. De famosos, de quem se torna famoso ou de quem tenta fazer o mundo copiá-lo. Compartilhar momentos, pessoas e cenários impõe-se como regra. E o fotógrafo torna-se quase dispensável. As selfies que o digam, acompanhadas dos recursos cada vez mais precisos de filtros e retoques disponibilizados em apps.

A melhor forma de expor a vaidade de cada um. O seu minuto de celebridade, invadindo momentaneamente a tela dos seguidores, novos e antigos. Curtidas, likes e comentários aguardados com ansiedade. Uma necessidade crescente de estar conectado vinte e quatro horas por dia.

Corpos e casais perfeitos, cenários paradisíacos, meninas antecipando a maturidade em sombras, rímel, batons “infantis” e poses compartilhados. Um mundo de “felicidade” e “prazer” camuflados, por vezes, distantes da realidade. “Por que não consigo chegar lá”? Sem o devido senso crítico, surge uma geração de frustrados.

E o fotógrafo da vida selvagem, quase imperceptível, seguindo pisadas no chão, aguardando pacientemente o momento ideal para capturar a chegada do animal, a luz perfeita do crepúsculo, o voo da ave que não deixa rastro.


O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa

XLIII – Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Zeca Baleiro – Price Tag (Jesse J)

Acesse também: Rituais cotidianos

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5 comments

  1. Perfeito!!!!
    O virtual nunca terá a essência do real.
    Criando um ambiente de competição, frustação e ansiedade.
    Além de pessoas sem personalidade.

  2. Muito boa sua análise. Já compartilhei um pouco disso, mas hoje estou constatando que devemos nos resguardar e procurar vivenciar as emoções e não expor situações que nem sempre são verdadeiras.

  3. Elzinha que texto verdadeiramente verdadeiro,faz dias que questiono a exposição virtual dos dias atuais,e fico a pensar que a humanidade tá sofrendo de uma grande vazio emocional.

    1. Bom dia Marisa! Vamos aproveitar o que o mundo virtual tem a oferecer e também utilizá-lo para refletir sobre os caminhos tomados pelo ser humano.

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