Doce português com pitada sertaneja

Enquanto escolho tira-gostos para degustar nas conversas de alpendres marinhos em tempo de verão, me deparo com uma embalagem de conteúdo escuro.

No piscar de olhos, veio a lembrança de Sebastiana, minha babá nos caminhos da infância, que cuidou da casa da fazenda Ingá até seus últimos dias.

Tinha uma mão certeira para o tempero da culinária sertaneja e deixava os visitantes da fazenda com água na boca e vontade de quero mais.

Na feitura da iguaria, mexia com paciência, manuseava as especiarias e levava o longo tempo necessário para garantir o sabor característico e a fama de seu doce.

A memória gustativa não permitiu hesitação, inclui aquela iguaria nas minhas compras e levei para o marido que, certamente, apreciaria o doce que remete às lembranças das terras do Seridó.

Assim que sentamos à mesa, comuniquei que trouxe uma surpresa para sobremesa e pedi para ele adivinhar o que seria.

Começou com filhós (seu doce preferido, feito pelas mãos de minha sogra e servido com um bom mel de rapadura), passou pelo doce de jaca, alfenins, mousse de chocolate, viajou até os pastéis de Belém…pedi que voltasse para o Brasil e lembrasse dos dias em Caicó.

O nome do doce não veio à tona; culpa do pouco uso e da falta de manutenção de nossas tradições, especialmente culinárias, substituídas pela globalização alimentar.

Desistiu de tentar. Dado por vencido, o jeito foi trazer o doce para mesa.

No rótulo da embalagem, a tradição familiar  na feitura do Chouriço, doce de origem portuguesa à base de sangue de porco, mantida por Ítalo Márcio, do Sítio Barbosa de Cima, em Caicó/RN.

Chouriço doce

O seu ingrediente principal afasta até os mais afoitos glutões, que deixam de saborear um doce de sabor intenso e bem temperado, que lembra o bolo pé de moleque.

Os portugueses que atravessaram o Atlântico trouxeram as papas de moado para o chão sertanejo, ou, quem sabe, outros doces que levam sangue de porco como o sarrabulho, o chouriço ou as morcelas doces.

Enquanto em terras lusitanas, ao sangue de porco eram acrescentados a farinha de trigo ou o pão esmigalhado, no sertão nordestino a mandioca ocupou o lugar do trigo.

No chão do Seridó, onde o porco era animal de cria nos chiqueiros, em dia de matança, ao sangue e à banha acrescentava-se rapadura, castanha de caju, leite de coco, farinha de mandioca, especiarias (canela, erva-doce, cravo, pimenta do reino e gengibre) e sal. Tacho no fogão a lenha, mãos revezando-se no manejo da colher de pau e depois de mais de oito horas de espera, o doce escuro era vertido em latas, com enfeite de castanha de caju (mais uma adaptação nordestina).

O sabor do ingrediente principal desaparece completamente e as especiarias sobressaem no doce escuro de consistência pastosa.

Enquanto a geração mais nova entorta o nariz para essa iguaria, vou me deliciando com a produção dos poucos que ainda mantêm viva a feitura desta tradição secular.

E aí, quem aprecia Chouriço, tradicional doce português com pitada sertaneja?


Isabel Costa

No fundo, somos recuperadores de património, material e imaterial. É essa a nossa missão. Sem passado não temos futuro. Queremos valorizá-lo com inovação, que é o que realmente importa.

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2 comments

  1. Sempre fiquei cismada com o ingrediente do porco… Mas, na terra dos meus pais é tradição a Espécie, conhece? Achei que ia falar dele.

    1. Gracita, o chouriço não tem sabor de sangue, lembra muito o pé de moleque. Se não estou enganada, o doce Espécie do Ceará não leva sangue de porco. Vale a pena provar um chouriço bem feito.

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