No balanço da rede

Tocador de Sanfona - Djanira, 1960


O tocador de sanfona (Djanira Motta)

Meu marido pede que sua rede permaneça armada no quarto durante os 365 dias do ano. Raramente dorme uma noite inteira nela, mas a utiliza para assistir à televisão e para o cochilo depois do almoço – privilégio a que se dá ao luxo, costume saudável e permanente de quem trabalha perto de casa.

Eu olhava para ela meio desconfiada. Não conseguia passar muito tempo suspensa por um tecido esticado. De quando em vez, um balanço leve para amenizar o calor dessas bandas de cá do Nordeste brasileiro.

O tempo foi passando e a coluna lombar começou a dar sinais que minha hiperlordose estava exigindo demais dos meus músculos. Não conseguia me acomodar na cama. Passava a noite como tapioca – virando de um lado para outro – abraçando e soltando travesseiros na busca de uma posição para um sono reconfortante. Consultas médicas, relaxantes musculares, anti-inflamatórios, pilates, RPG e pillow top apenas amenizam momentaneamente as dores.

Mas como dizem que entre marido e mulher, tudo “pega”, resolvi experimentar a dormida de rede. No começo foi complicado, tinha que me posicionar na diagonal e tentar apoiar a cabeça para evitar torcicolo. Aos poucos, o corpo foi agradecendo, relaxando e conseguindo passar a noite inteira nessa fabulosa invenção indígena.

Vai ver que os genes dos meus antepassados precisavam ser resgatados! Ouvi relatos que minha trisavó passava o dia no alpendre de sua casa na fazenda, balançando a rede com o leve toque dos pés no chão, chegando a deixar uma baixa permanente no piso. Apesar das inúmeras opiniões contrárias, a rede acomodou perfeitamente minha coluna, ou será que foi a coluna que se amoldou à rede?

Desde então, observo-a com carinho, compreendendo perfeitamente o ciúme que meu marido tem de sua rede e lençóis. Contaminada por seus benefícios, consigo enxergar suas outras funções. Sua utilização aprimorou-se e chegou até os dias atuais, unificando utilidade e beleza.

As varandas de crochê cuidadosamente tramadas emprestam-lhe beleza e funcionalidade na proteção de insetos indesejados. Mas tem quem prefira sem elas, para evitar o batido leve ao sabor do vento.

No calor insuportável do sertão, melhor molhá-la para refrescar e permitir um cochilo mais confortável – o clima encarrega-se de secá-la. Quando a temperatura cai, aconselha-se colocar um agasalho ou mesmo forrá-la com mantas quentinhas, caso contrário, o frio cortante penetra as entranhas.

E os efeitos da queda de hormônios manifestando-se. Sem conseguir pregar os olhos – logo eu que sempre fui uma dorminhoca inveterada – vendo a noite virar dia e pensando nos meus escritos no suave balanço da rede.


Jorge Fernandes (poeta potiguar | 1887-1953)

REDE

Emboladora do sono…
Balanço dos alpendres e dos ranchos…
Vai e vem nas modinhas langorosas…
Vai e vem de embalos e canções…
Professora de violões…
Tipóia dos amores clandestinos…
Grande…  larga e forte…  pra casais…
Berço de grande raça.
 
S                                   A
U                         S
S                N
P       E
 
Guardadora de sonhos
Pra madona ao meio-dia
Grande… côncava…
Lá no fundo dorme um bichinho…
—  Balança o punho da rede pro menino dormir.

Cartaz da exposição Vaivém no CCBB/SP

O Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, expôs a Mostra Vaivém entre 22.05 e 29.07.2019. A exposição investigou as relações entre as redes de dormir e a construção da identidade nacional no Brasil.


Lenine – A Rede

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8 comments

  1. Adoro rede e o conforto que ela me dá no canto do meu quarto, além de embelezar e humanizar o ambiente. É o lugar favorito da casa….eu e meu marido corremos para ver quem chega primeiro. E meu filho de 7 anos agora está gostando de dormir na nossa rede. Identificação total!!!.

    1. São nossos costumes passando de geração em geração. Valeu Ló.

  2. Elzinha: muito grata por nós proporcionar os seus significativos escritos! Prossiga.

    1. Oi Tia, vamos continuar escrevendo e divulgando boas ideias. Beijão.

  3. Essa leitura já está ficando obrigatória ao final do dia! É um bálsamo para a alma, além de ser sempre uma viagem a bons tempos, à memória de um passado já tão diferente do presente … é um mergulho na nossa própria história! Parabéns Elza, e obrigada por nos proporcionar momentos tão bons!

    1. Oi Mirtinha, feliz em compartilhar com vocês as minhas ideias, sensações, histórias e tudo que a vida deixa de rastro bom! Beijão.

  4. Num balanço de rede vc é acalentada, sacudida por sonhos e até como bem disse vc, fica de alma lavada depois que, generosamente umedece suas entranhas e espera a briza que sopra do poente para nos presentear com seu ar refrescante. Esse era meu ar refrigerado lá no meu saudoso Alto do Chocalho.

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