No Rastro das Águas – Capítulo 11

(…)

No dia seguinte, muito trabalho para colocarem em ordem a bagunça do dia anterior. As atividades começavam lentas, no compasso da ressaca. Estavam alegres e animados, mas com os pés cansados de tanto arrastarem na dança. A festa rendeu bons comentários e alguns casos de namoros.


Quem nunca presenciou a fé do povo sertanejo tem dificuldades de perceber o que representa a festa de sua Padroeira. Para se ter ideia, muitos dos seus devotos não conhecem nem ao menos o nome do mês em que se comemora o seu aniversário; não sabem que é mês de julho, mas apenas o mês de Santana.

A imagem de Santana é venerada desde o tempo de fundação da cidade de Currais Novos, quando, em 1808, o Capitão-Mor Cipriano Lopes Galvão mandou edificar a capela de Santana, somente sendo inaugurada em 1813. Mas, só em 1884 foi oficializado o devotamento à Santana.

Desde esse tempo que a Santa é venerada. O crescimento do povoado em nada abalou a fé de seus devotos; muito ao contrário, a cada ano mais e mais fiéis compareciam à capela, depois transformada em Igreja e posteriormente em Matriz. No início, quando a maioria da população vivia no campo, o comparecimento à missa dava-se pelo menos uma vez ao mês; com o aumento da população urbana, o intervalo foi diminuindo, chegando a ser diária a celebração de missas na Matriz.

Mas a comemoração do aniversário de Santana não é uma simples missa. É o congraçamento de todo o povo da região; seja da zona rural, seja urbana, quer se trate de rico, quer se trate de pobre, todos prestam suas homenagens, louvando e agradecendo às graças alcançadas. É a unificação das variadas espécies humanas em torno de um só objetivo.

O espírito religioso sempre esteve presente no coração e na alma sertaneja. A escassez material porque passam seus habitantes, sobretudo os menos afortunados, contribui sobremaneira para o fortalecimento desse sentimento abstrato. Quando os recursos materiais rareiam, não o excedente, mas o necessário para a sua subsistência, o homem se apega com todo fervor ao subjetivismo da fé.

E a fé aqui é toda canalizada na figura de Santana. Cria-se uma força que se sobrepõe a qualquer explicação racional. Quanto mais sofrimento, abatimento, desalento, mais orações para adquirirem forças e esperanças. Esperança que, alicerçada na fé divina, tem permitido ao sertanejo enfrentar as amarguras das estiagens, da ausência de alimentos para seus familiares e do desânimo de verem seus animais e entes mais queridos definharem até a morte.

E quando pensam que não vão mais suportar, Santana lhes manda um inverno, que faz brotar das entranhas um sentimento tão profundo de gratidão que compensa todo o sofrimento de seu povo. A escassez dá lugar à fartura, alimentando o amor à Santa e à terra de seus devotos. E o mês de julho é todo dedicado a esse agradecimento. O povo reúne-se, criando uma corrente de solidariedade que exala força e fé, emocionando até os mais descrentes. Não existe rico ou pobre; todos prestam suas homenagens, num congraçamento único.

Além da festa religiosa, com missas e novenas, a ocasião tornou-se também um acontecimento social, para onde todos convergem, sempre bem arrumados, a divertirem-se nas barracas de comidas típicas e nos leilões em benefício da Paróquia.

Os currais-novenses amontoam-se na praça central, para desfrutarem do lado social da festa. Leilões são promovidos, enquanto as mulheres disputam as roupas mais elegantes. Beatas discutem os ensinamentos de Cristo, adaptando-os à realidade local. O vigário percorre a multidão, detendo-se nas discussões políticas mais acaloradas, procurando acalmar os ânimos, mas deixando sempre uma mensagem, principalmente quando a Igreja dispunha de tanta força política.

Dia 26 de julho, na fazenda Cacimba do Meio, todos já estão prontos. Antônio Bezerra, Ritinha – com José nos braços – e Tano já estão montados em seus cavalos, enquanto seus moradores, acompanhados de toda a família, alguns em burros, outros em carroças e os demais a pé dão início ao cortejo. Com suas melhores roupas, estão de saída para a procissão de Santana.

Alguns levam os melhores exemplares de suas lavouras em oferendas à Santa. Muitos vão pagar suas promessas e durante a procissão, no centro da Vila, carregarão pedras, descalços ou ajoelhados, dependendo do grau de dificuldade da graça alcançada. Qualquer sacrifício vale para louvar e agradecer à Padroeira desse povo sofrido, que se satisfaz com o mínimo necessário.

O chão fica pequeno para a multidão de fiéis. Os mais devotos emocionam-se. Hinos são entoadas com todo fervor. A Santa percorre a Vila, seguida de toda a população currais-novense. Foguetões estrondam indicando a passagem. Após a procissão, a missa é celebrada. Na capela, os bancos e genuflexórios são reservados às famílias mais importantes, com as mulheres expondo terços valiosos nas mãos e véus na cabeça, enquanto que o restante do povo acotovela-se disputando espaço para ouvir o sermão do vigário local.

Antônio, com sua família, muito religioso, assiste compenetrado à missa. Ritinha, muito vaidosa, dentro de seus trajes novos, especialmente confeccionados para a ocasião, com José em seu colo, agradece pela felicidade deste filho e pela graça de estar dispondo de boa saúde no seu primeiro ano de vida.

As oferendas são recolhidas; cada um dá o que pode e os recursos ganham sua destinação. Os gêneros alimentícios são distribuídos aos mais necessitados, enquanto os recursos em dinheiro, geralmente ofertados pelos mais afortunados que, em consequência, gozam de certas regalias na Igreja, servem para alguma melhoria da capela e outras obras assistenciais.

Nessa época, o sentimento religioso é forte o bastante para que jovens disputem o lugar de coroinha da Igreja, ajudando o padre durante a celebração. A quantidade de jovens, quase sempre o filho mais velho, que se torna seminarista, reflete a força da Igreja católica, muito embora alguns busquem apenas o bom nível de formação oferecido por estes seminários.

Mas é entre os mais humildes que a festa tem maior significado. Não há a disputa social; sua finalidade única é reverenciar sua Padroeira. Como o ano tinha sido razoável de inverno e dispunham de alimentos fartos, os agradecimentos são em dobro e as preces multiplicam-se, para que no próximo ano as chuvas se repitam, afastando o fantasma da estiagem. Entregam suas almas à proteção de Santana. Mas caso seja a vontade de Deus e Este não lhes mandar a água abençoada, é na Santa que vão se apoiar.

Retornam para casa de alma límpida, com a fé renovada e disposição para mais um ano de trabalho em busca da sobrevivência. A esperança preenche seus corações, enquanto as mãos de Santana dão forças para a árdua tarefa do dia-a-dia. Com este pensamento, já estão prontos para iniciarem a colheita do algodão, que vem tomando conta do chão seridoense, pincelando de branco a paisagem da região.


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