No Rastro das Águas – Capítulo 12

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Retornam para casa de alma límpida, com a fé renovada e disposição para mais um ano de trabalho em busca da sobrevivência. A esperança preenche seus corações, enquanto as mãos de Santana dão forças para a árdua tarefa do dia-a-dia. Com este pensamento, já estão prontos para iniciarem a colheita do algodão, que vem tomando conta do chão seridoense, pincelando de branco a paisagem da região.


Mãos preguiçosas torciam o pano de algodão. Canecas de flandres aparavam o líquido quente, escuro e cheiroso que escorria. Na trempe, uma panela borbulhava cozinhando as batatas da vazante. Uma pequena lamparina mal iluminava as paredes de barro da casa de taipa. A ingestão do café ajudava a afastar a cruviana e a despertar para mais um dia de trabalho. Logo, todos estavam de pé, bocejando e espreguiçando-se, lavando o rosto com a água fria do pote para poder despertar.

Tão logo terminavam o café, com a barra ainda por quebrar, organizavam os afazeres, adiantando o serviço para dispor de mais tempo para o algodão. Logo depois, com chapéus de palha pendurados nos pescoços, cabaças com água para saciar a sede e sacos de estopa a tiracolo, punham-se a caminho dos algodoais. Saíam em fila, com as alpercatas estalando no caminho pedregoso, dispersando-se até às carreiras nas quais tinham parado a colheita no dia anterior.

Estavam em agosto, época de plena colheita. Em maio, as flores dos algodoeiros embelezaram os roçados das fazendas, enquanto que agora era o branco que se espalhava na paisagem da região, parecendo pequenos flocos de nuvens. Observando esses flocos, os moradores mais astutos matutavam sobre as mudanças sobre as mudanças promovidas pelo algodão.

Suas casas tinham sido construídas dentro do próprio roçado, facilitando o deslocamento para a apanha do algodão. Esperavam o orvalho secar para acelerar o ritmo do trabalho, que diminuía com o calor escaldante das horas do meio dia, quando o sol batia fortes, refletindo o branco ofuscante, que chegava a doer na vista.

O cansaço tomava conta do corpo, a claridade incomodava, o reflexo do sol transportava-os para um mundo de sonhos. O ouro branco penetrava em seus domínios, a riqueza transformava seus lares; nada de incessantes labutas, nada de barriga vazia; seus restritos desejos estavam satisfeitos: chegara a hora da mudança. Um grito forte despertava-os de um estado de torpor, no qual tinham alcançados seus objetivos. Observando aquele roçado, retornavam à realidade. O pequeno pedaço de terra seria suficiente para alimentar tantas bocas e ainda permitir uma melhoria de vida? Voltavam-se, então, para o conformismo da fé, quando justificavam seus desamparos pela vontade de Deus.

Em épocas passadas, só os vaqueiros de confiança tinham possibilidade de ascensão econômica, decorrente da sorte de bezerros que recebiam como forma de pagamento de seu trabalho. Muitos conseguiram juntar um pequeno rebanho e tomaram seus rumos, tornando-se proprietários de terras. Com o passar dos anos e a valorização do gado bovino, extinguiram-se as quartas e passaram a perceber um salário, um pequeno roçado e o direito de criarem umas poucas cabeças para complementarem seus ganhos. Agora, a produção do algodão promovia pequenas mudanças.

Partindo de uma economia fechada, tradicionalmente pastoril, em que a agricultura praticada restringia-se à de subsistência, o algodão estava permitindo a abertura da economia através da comercialização. Ao final da colheita, entraria algum dinheiro para aquisição de certas necessidades básicas das famílias sertanejas. Uma muda nova de roupa, uma alpercata nova ou, quem sabe, um par de sapatos. Com o afluxo de moeda ao mercado local, a Vila ganhava novo impulso, decorrente do comércio do algodão. Conscientes de tal realidade, todos os braços disponíveis seguiam para os campos de algodão.

Nesse desafio, entrava toda a família: mulher, filho, filha, menino ou menina. Só os mais novos ficavam em casa, com alguém que já tivesse alguma responsabilidade e encarregado de fazer o feijão, que junto com a farinha, a rapadura e escassos pedaços de carne, alimentavam as barrigas famintas.

Percorriam as carreiras dos algodoais, retirando toda a plumagem branca daquelas plantas benditas. As mãos mais calejadas, acostumadas às árduas tarefas, já estavam anestesiadas; mas as mãos inocentes, que se alfabetizaram no trabalho da terra, de vez em quando se furavam na catemba seca da flor. A dor da furada misturava-se à dor do prematuro trabalho. Ao final do dia, peles queimadas, rostos enrugados, mãos feridas, corpos exaustos. Antes de encerrarem as atividades do dia, carregavam a produção para dentro de casa, que serviria como depósito, até quanto a levassem para a pesagem nos armazéns do proprietário da terra. Corpos fatigados acomodavam-se nas redes, para um merecido descanso.

Depois que a produção era pesada e entregue ao dono da fazenda, com a partida devida, alguns braços eram deslocados para o descaroçamento do algodão, utilizando-se a bolandeira. Nesta mesma época, começavam as surgir o vapor, que iria gradativamente tomando o lugar da bolandeira.

Após o processo de separação do caroço e da pluma, distribuíam o primeiro para alimentação do gado, enquanto que a pluma era prensada, em almanjarras, e enfarda; fardos pequenos, de no máximo sessenta e quatro quilos, já que seriam transportados no lombo dos animais, na falta de outro meio de transporte.

Esses fardos eram transportados até à Vila, de onde partiam os comboios de burros, puxados pela burra-madrinha, guiados pelo estalo do chicote, com destino aos mercados de Natal e de Campina Grande, pois diante da precariedade das vias de escoamento para o litoral, grande parte da produção era dirigida aos estados da Paraíba e Pernambuco. Chegando a Natal, seriam reprensados e exportados.

Entre a praça dos algodoeiros, plantavam milho e feijão; devido ao curto período do ciclo, foram colhidos para alimentação, restando apenas o milharal quebrado, que seria colhido depois do algodão e armazenado para servir de semente para a próxima safra. Raramente se chegava à comercialização destes produtos, pois depois de vários anos de fome, o sertanejo tinha tirado lições. E como a agricultura praticada era bastante atrasada, a comercialização do excedente somente ocorria em anos de excelentes invernos.

Encerravam o ano produtivo e retomavam, incansáveis, à expectativa do inverno, para reiniciarem a labuta. O gado podia, então, adentrar nos roçados à procura do restolho das plantações.

Neste compasso, o sertanejo ia levando sua vida simples e pacata, cheia de sobressaltos com a estiagem. De um lado, os grandes proprietários de terras e pecuaristas; de outro, os moradores de terras alheias, que trabalhavam na promissora cultura do algodão. Viviam no ambiente essencialmente rural, em meio a relações de produção semifeudais, isolados do restante do Brasil, desapercebidos das transformações que se processavam no litoral, com seus valores rígidos, que os qualificavam como um povo forte, digno, respeitador, honesto, independente, batalhador, com fibra e garra suficiente para resistirem às constantes secas e permanecerem confiantes na chegada de revigorantes invernos.

Somente quando a seca batia forte e a fome dizimava famílias e tudo quanto era ser vivo, abalando a fé dos mais fiéis devotos de Santana e minguando suas esperanças, os seridoenses reuniam suas últimas forças, juntavam seus trapos e o pouco que lhes restava e entregavam os pontos na batalha contínua contra as forças da natureza, saindo sem rumo e sem destino em busca de algum lugar onde pudessem fazer florescer suas sementes. Botavam o pé na estrada, seguindo o prumo das notícias de melhores condições de vida, quer fossem nos seringais do Norte, quer nos cafezais do Sul, recebendo a solidariedade de muitos ao longo do árduo caminho.


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