No Rastro das Águas – Capítulo 13

(…)

Somente quando a seca batia forte e a fome dizimava famílias e tudo quanto era ser vivo, abalando a fé dos mais fiéis devotos de Santana e minguando suas esperanças, os seridoenses reuniam suas últimas forças, juntavam seus trapos e o pouco que lhes restava e entregavam os pontos na batalha contínua contra as forças da natureza, saindo sem rumo e sem destino em busca de algum lugar onde pudessem fazer florescer suas sementes. Botavam o pé na estrada, seguindo o prumo das notícias de melhores condições de vida, quer fossem nos seringais do Norte, quer nos cafezais do Sul, recebendo a solidariedade de muitos ao longo do árduo caminho.


José completara um ano. Esperto como ele só, já pinotava alegre dentro de casa, fazendo enlouquecer Sinhá Cândida com suas constantes travessuras. Observando as traquinagens, seu pai sonhava com o futuro próximo e matutava se aquele menino iria manter a tradição de proprietário de terra, ou se tomaria outro destino.

Antônio Bezerra passava por um período de inquietação, misto de descoberta e entusiasmo, pondo de um lado a lentidão da atividade tradicional e de outro o dinamismo de uma nova atividade. A reunião de suas partes na produção de cada um de seus meeiros, embora pequena em decorrência da seca nos dois anos anteriores, resultou numa quantia considerável e com ela pôde negociar bons preços. A comercialização do produto despertou-lhe um interesse crescente. A entrada da moeda, a discussão da qualidade do produto em busca de melhores preços e a possibilidade de o excedente estar disponível para qualquer destinação fizeram brotar uma paixão pela nova atividade – o comércio.

Se na produção o fator primordial era a benevolência da mãe-Natureza, no comércio o sucesso dependia essencialmente da capacidade do negociador. E parece que Antônio possuía esse dom nato, além do fato de ser filho de uma das mais importantes figuras do Município; tanto que a partir desta época e no decorrer dos primeiros anos de seu casamento, passaria a comercializar o algodão da redondeza, acumulando um capital que permitiria atingir áreas cada vez mais distantes.

O ano começava com a limpa dos roçados, o plantio nas primeiras chuvas, a engorda do gado na primeira babugem, o verde tomando conta. Em abril, as primeiras colheitas de milho e feijão. Em maio, o florescer dos algodoais. Em junho, São João e vaquejadas. Em julho, festa de Santana. De agosto em diante, Antônio percorria as fazendas do município e da redondeza examinando, negociando, pesando e comprando o ouro branco que se espalhava no chão do Seridó.

A qualidade do algodão mocó, com suas fibras longas, ganhava fama. As safras de 1910 a 1912 foram excelentes. Em pouco tempo, o jovem Antônio Bezerra passara a acumular riqueza. Na fazenda Cacimba do Meio, seu filho crescia em contato direto com a natureza. O tempo passava e já era hora de José ganhar companhia.

Em 1910, Ritinha engravidou. No início de 1911, passou novamente pela experiência de ser mãe. Apesar de já conhecer os sentimentos que afloram à mulher neste estado, a aflição de saber se a criança seria normal tomou conta de seu coração. Finalmente, em 23 de janeiro, Maria Amália Bezerra deu o ar de sua graça. As atenções da casa foram todas direcionadas para ela, despertando ciúmes em seu irmão mais velho. Sua mãe estava satisfeitíssima, pois uma mulher seria a garantia de uma companhia.

Antônio, em princípio, ficou um pouco desanimado, pois um outro filho homem o ajudaria nos seus promissores negócios; mas logo se conformou, pois Amália seria a companhia de Ritinha, nos longos períodos que passava ausente de casa, e ainda mais: a filha mulher tinha a responsabilidade de tomar contas dos pais na velhice.

No lombo de seu cavalo, acompanhado de Tano, percorrendo a fazenda e verificando o estado das cercas, Antônio analisou os oitocentos hectares de sua terra, medindo os prós e os contras, procurando encontrar o local mais apropriado. Estava decidido a construir uma nova casa. O crescimento da família e a disponibilidade financeira foram os fatores fundamentais na sua decisão. Mas a vaidade de ter uma casa, nos moldes das grandes casas dos coronéis da região, símbolo do patriarcalismo vigente e sinônimo do progresso econômico, também pesou em sua decisão.

Considerando as necessidades de segurança e ventilação, optou pelo alto próximo ao serrote, em frente à casa de então. O local tinha uma paisagem privilegiada, podendo avistar-se ao sudoeste o centro da Vila e ao norte a Serra de Santana, sendo bem próximo aos currais e à antiga sede da fazenda. Escolhido o local, providências foram tomadas no sentido de contratar pessoal e comprar material para a construção. Os trabalhos prosseguiram no ritmo permitido pelas limitações da época e em 1912 a casa estava concluída, com suas grossas paredes de alvenaria.

Ritinha comandou os trabalhos de limpeza da nova casa, para que realizassem a mudança. Como a nova casa não era distante e com a ajuda dos braços fortes dos moradores, de repente tudo estava no seu devido lugar, ainda mais quando os móveis eram poucos, sem excessos nem luxo. Até José ajudou na mudança, carregando panelas e utensílios de cozinha. No sertão de então, menino era para fazer mandado e muito cedo começava a participar das tarefas da casa.

Orgulhoso de sua nova morada, Antônio desfrutava de um alpendre frontal, com duas portas nas extremidades e uma janela central. Partindo-se do alpendre, adentrava-se na sala principal e depois na sala de jantar para visitas, ao lado direito da qual estava o quarto de José e no centro o corredor onde se guardavam a farinha num sótão suspenso, com o quarto de Amália à direita e o do casal à esquerda. No final do corredor, a sala de refeições e ao fundo, do lado direito, a cozinha, com seu fogão de alvenaria à lenha e do lado esquerdo o quarto de fazer queijos, colado ao quarto da criadagem. Dentro do muro, ao fundo, o banheiro – sinal de progresso.

Deitado em seu novo quarto, José observava o telhado, bem mais alto que o da casa anterior. As meias paredes permitiam a passagem da fraca luz proveniente do candeeiro que dormia aceso. O vento soprava, movimentando as sombras refletidas nas paredes, criando personagens assombrosos na imaginação daquela pequena cabecinha. Assustado, recorria ao quarto seguro de seus pais.

A luz do amanhecer afastava todos os seus temores. Voltava a ser aquele menino forte e destemido, para desbrava todos os espaçosos cômodos de sua nova casa. Brincava de esconde-esconde com Amália, que o seguia com passos inseguros. Ritinha coordenava os afazeres domésticos, já planejando a compra de uma mobília nova para fazer frente à casa recém-construída, bem mais ventilada que a anterior. Antônio arrodeava a casa, certificando-se da escolha correta como ponto estratégico, em caso de alguma emergência. Afinal, havia um grande motivo para preocupação para os fazendeiros e coronéis de então e até seu próprio filho já testemunhara o fato no início do ano.


CLIQUE AQUI PARA LER O CAPÍTULO 14

Leia também

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *