No Rastro das Águas – Capítulo 16

(…)

Seus ensinamentos foram transmitidos a seus descendentes. Convivendo nesse ambiente, José Bezerra de Araújo absorve-os facilmente. Espelhava-se em seus exemplos, principalmente nos aspectos de retidão de caráter, espírito de justiça, honestidade, vontade conciliadora e honradez.


Descalço na terra encharcada, com os olhos grudados no chão, José procurava as pedras mais apropriadas ao seu intento, o que não era tarefa difícil em solo tão pedregoso. Pretendia construir um curral enorme, para abrigar o rebanho que estava por chegar. No dia seguinte, matariam um carneiro e, depois da panelada, ninguém procurasse por ele em outro lugar. Estaria aos pés de Sinhá Cândida, aguardando a limpeza dos pratos, para escolher as melhores reses.

Assim que o almoço foi servido e depois de Antônio Bezerra escolher sua porção, os demais membros da família puderam fartar-se na panelada. Tão logo findaram a refeição, José correu para junto de Sinhá Cândida, que ariava as panelas com bucha lava-pratos e areia grossa do rio, a fim de escolher as melhores cabeças. Amália também reclamou sua parte. Depois de lavados, os ossos transformavam-se em boi, vaca, garrote, novilha, bezerro ou bezerra. Os tamanhos e formas é que iriam definir o rebanho.

De posse desse tesouro, José dirigiu-se ao local do curral recém-construído com as pedras que catara no dia anterior. Podia, então, iniciar sua brincadeira. Junto com os meninos da redondeza, passavam horas a fio representando o trabalho diário com os bichos da fazenda. Repetiam todas as rotinas, tangendo aqueles ossos, aboiando, apartando, derrubando, engordando, sonhando.

Utilizavam toda a imaginação de criança, para repetirem as tarefas dos adultos. Ressuscitavam os ossos imóveis dos animais mortos. Assim como na vida real, nominavam cada rês, chamando-as pelo nome: Careta, Bonita, Pintado, Serra Branca, Ponta Virada, Azulão, Estrela D’Alva…

Trotando em seu cavalo de pau, seguia elegantemente, como se montado estivesse num animal de verdade. A criatividade infantil não tinha limites e José não via a hora de transformar seu sonho em realidade. Por enquanto, cavalo de verdade só quando montava junto com seu pai ou com padrinho Tano, mas já ensaiava umas escapulidas, puxado pelos meninos da fazenda.

Entre um intervalo e outro das brincadeiras, construía uma base sólida para a formação de seu caráter, ante a educação rígida, assegurada especialmente por sua mãe, Ritinha, e por seu pai, Antônio. O respeito aos mais velhos era uma exigência natural: amanhecia o dia pedindo a bênção a seus pais, gesto repetido na hora de dormir.

Além dos ensinamentos morais, a religião fazia parte de seu aprendizado. Com seus pais, muito cedo aprendeu suas primeiras orações. Antes de dormir, proclamava-as orgulhoso, sem nenhum erro. Deitado em sua cama, meio dormindo, meio acordado, pensava nos horrores do inferno, chegando a ter pesadelos assombrosos, em decorrência dos pecados inocentes de criança, mas que na sua cabeça ganhava proporções gigantescas. Era assim que lhe ensinavam a diferenciar o certo e o errado. Qualquer deslize significava ser barrado na porta do céu e encaminhado ao calor do inferno. Muitas vezes, despertou e correu para os braços acolhedores de sua mãe.

Quando não encontrava o acolhimento esperado, podia contar, com certeza, com a cumplicidade amorosa de Sinhá Cândida, que o tratava como verdadeiro filho. Certa vez, com sua mãe acompanhando seu pai em suas constantes viagens, José aprontou mais uma de suas tantas estripulias. Subiu no telhado, quase enlouquecendo-a. Ela gritava, implorava para que descesse sem demora, com medo de uma queda mortal, ao que ele respondia: “se ameaçar contar a meus pais, eu me jogo daqui”!

E assim ia crescendo, entre uma e outra travessura, vivendo em contato direto com a natureza, no ambiente estritamente rural, onde aprendia a amar a terra, o alvorecer radiante, o cheiro dos bichos, o entardecer relaxante.

Mas a liberdade desfrutada no solo da fazenda Cacimba do Meio, correndo solto na caatinga, caçando passarinhos, brincando livre na várzea do rio, descobrindo serrotes de pedras que garantiam esconderijos perfeitos ou ajudando na lida do gado, também esbarrava no lado repressor da educação.

Com o prato de comida à sua frente, já planejava a forma de separar aquelas rodelas roxas colocadas sobre a paçoca. Do alto de sua sabedoria infantil, possuía a capacidade incontestável de distinguir, a um simples olhar, o que lhe era saboroso, fosse pelos critérios olfativos, fosse pelos visuais; assim, assegurou veemente que não gostava de cebola. Seu pai contestou sua atitude e ordenou que primeiro experimentasse, para depois tirar suas conclusões, mas José manteve-se intransigente. Em consequência, levou uma surra, que transformou em ojeriza a simples menção da palavra “cebola”. Pelo resto de sua vida, jamais comeu qualquer prato que contivesse o vegetal. Se chegasse sem avisar em alguma casa e resolvesse fazer qualquer refeição, se não desse para dispensar a cebola no preparo dos pratos, contentava-se com um ovo frito e arroz.

Quando não era uma surra, um castigo num quarto escuro fazia o mesmo efeito. Era assim que os meninos eram educados no sertão de antigamente, fazendo valer as noções de respeito, hierarquia e obediência.

José passou vários dias desconfiado, sem sua alegria habitual, com medo de fazer suas travessuras. Mas um fenômeno da natureza encarregou-se de apagar seu desânimo.

Tudo indicava que 1914 seria um ano excepcional de chuva, com um inverno rigoroso. Só em janeiro tinha desabado quase a metade da água do ano todo. Os meses seguintes deram uma ligeira trégua, mesmo sem deixar de molhar a terra currais-novense. Agora estavam em maio.

Antônio Bezerra estava preocupado com os algodoais. O excesso de chuvas poderia prejudicar a plantação. O tempo não dava sossego ao seridoense: quando não era a seca castigando o solo da região, era o excesso de chuva; dos males, o menor. Toda noite, o relâmpago iluminava o céu por todos os lados e trovões estrondavam em resposta.

O dia amanheceu preguiçoso. Nuvens pesadas mal deixavam passar os raios de sol das primeiras horas do dia. Ninguém duvidou de que um temporal estava a caminho. O vento poente soprou forte. Em casa, os vasilhames já estavam estrategicamente colocados, aguardando a água para ser armazenada.

A chuva desabou de uma vez. Grossos pingos batiam com força nas telhas, chegando a assustar as crianças. Antônio ensaiou um banho no terreiro com os meninos, mas Ritinha argumentou que não seria prudente, tamanha a quantidade de relâmpagos e trovões. O clarear, seguido pelos estrondos que ecoavam dentro do peito, pareciam anormais. As águas não mais penetravam na terra encharcada, seguiam os desníveis do terreno, correndo em direção aos rios e açudes existentes.

Em pouco tempo, os rios transbordaram e os açudes sangraram, quando não foram embora junto com a água. A lama tomou conta dos caminhos. O volume de água era desconhecido para todos. José esqueceu a palmatória e esbaldou-se nas brincadeiras de construir açudes, riachos e córregos. Chegava em casa com a roupa lamenta, com Sinhá Cândida a reclamar do trabalho que dava para tirar o encardido, ainda mais quando o sol não aparecia.

A chuva prolongou-se até agosto e ao final do ano tinha chovido mais do que o normal em Currais Novos, fazendo valer a boa fama de inverno dos anos de final quatro. Aquele não foi um ano comum. Parecia que Deus tinha aberto as torneiras do céu. Para os mais experientes, aquilo não era bom sinal; estavam antevendo um quadro dramático.


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