No Rastro das Águas – Capítulo 17

(…)

A chuva prolongou-se até agosto e ao final do ano tinha chovido mais do que o normal em Currais Novos, fazendo valer a boa fama de inverno dos anos de final quatro. Aquele não foi um ano comum. Parecia que Deus tinha aberto as torneiras do céu. Para os mais experientes, aquilo não era bom sinal; estavam antevendo um quadro dramático.


Dia de São José, sexta-feira, 19 de março de 1915, os olhos, as preces, a alma, o coração e a vida do sertanejo convergiam para um só ponto: a chegada da chuva. Passaram o dia de olho no céu, na tentativa de vislumbrar qualquer vestígio da água que não vinha.

Desde o início do mês que os sertanejos acendiam velas, suplicando ao Santo o líquido para saciar a sede do povo. Na Cacimba do Meio não foi diferente. Toda noite, ao deitar, José também dirigia suas orações, pedindo à Santana a chegada do inverno. Mesmo sem ter noção da gravidade da situação, percebia a aflição de seus pais e dos moradores da fazenda. Seu pai andava irritado, bem diferente da alegria vivida no ano anterior. Sua mãe acendia velas toda noite no oratório; até padrinho Tano demonstrava sua inquietação.

Os moradores despejaram toda a esperança ao semear nas primeiras poucas chuvas que caíram em janeiro; mas fevereiro não viu um pingo de água sequer e as plantações não vingaram ou poucas brotaram. Agora, esperavam que São José fosse complacente e mandasse a chuva necessária. Mas o dia terminou e a chuva não veio.

Um calafrio passou pelas costas de padrinho Tano. Mal presságio! Bem que ele desconfiou do aguaceiro do ano anterior. Experiente como ele só, já previa a desgraça que se formava. Tratou de combinar com Antônio Bezerra a forma de escapar o rebanho. A pouca babugem brotou em janeiro não tinha resistido até março. A cacimba tinha água, ainda resquício do ano excelente de inverno, porém não se sabia por quanto tempo.

A preocupação maior estava no seio das famílias dos meeiros e dos pequenos proprietários. Sem reservas e sem o pouco para garantir a subsistência, não sabiam o que fazer. Iriam tentar escapar com o mínimo possível, esperando que a estiagem não fosse tão rigorosa.

O tempo foi passando e a desesperança tomou conta do coração. Em abril, uma chuva fina amenizou a poeira, mas não foi suficiente para revigorar a folhagem. As poucas mudas que teimaram em brotar, recolhiam-se, contorciam-se, tentando, em vão, implorar por um pouco de água. Sem resposta a seus apelos, murcharam, agonizaram, secaram. Junto, minguava também o ânimo do povo sertanejo.

A pouca criação de que dispunham já não tinha mais do que viver. Mesmo alimentada com xiquexique e cardeiro queimados, a carne armazenada já fora utilizada como última fonte de energia. Um esqueleto coberto de couro e olhar vazio teimava em permanecer de pé até a hora fatal. Seu dono, num esforço inútil, amparava-o, tentando suspendê-lo. As derradeiras forças apagavam-se. O sertão enchia-se de carcaças. Melhor para os urubus. O calor fustigante acelerava o processo de decomposição. Quando podia, o sertanejo ainda tentava arrematar o último tostão com a venda do couro. Era chegada a hora de partir, antes que fosse o homem o próximo a ser devorado.

Pisando na terra ressecada, estalando as alpercatas no chão pedregoso, observando o sol fustigando a paisagem, com a linha do horizonte a demarcar um mundo desconhecido, o homem simples sente os olhos marejando, engole no seco e aborta uma emoção que teima em transparecer. Não pode desperdiçar as lágrimas; até este líquido tem que ser poupado. Seu coração tem que ser forte como as pedras da região. A solidez é seu escudo para enfrentar tempos difíceis.

Em casa, José parece abatido. Os meninos da redondeza, companheiros de brincadeiras, não falavam em outra coisa: talvez precisassem ganhar o mundo junto com seus pais. À medida que a seca se prolongava, sem alternativa para sobreviver, o nordestino, pobre de recursos e rico de coragem, vai buscar nas entranhas as forças necessárias para tentar a sorte no desconhecido.

Diante da situação calamitosa, o próprio Governo Federal tentou alguma providência. Com as constantes estiagens no Nordeste, tinha criado, em 1909, a Inspetoria Federal de Obras contra as Secas – IFOCS. Engenheiros e técnicos passaram a percorrer os sertões, estudando a construção dos primeiros açudes públicos. Eles vinham observar o caminho das águas, projetando os reservatórios, para serem construídos na estiagem.

O telégrafo, que tinha sido instalado naquele ano, não parava. Pedidos de ajuda aos governos Estadual e Federal clamavam por alguma providência para amenizar a situação de calamidade. Deram, então, início à construção de açudes e estradas e perfurações de poços, com a finalidade de absorver a mão-de-obra e tentar evitar o êxodo rural. Mas os recursos eram poucos, as obras insuficientes e o baixo salário pago não dava para manter famílias famintas.

A solução era botar o pé na estrada. Com o coração partido, cheio de incertezas, o chefe da casa tomava a iniciativa. Desamparado, suplicava à Santana pelas almas de sua família, pedia forças para a longa jornada, esperando que todos escapassem. Reunia o pouco que lhe restara, suspirava fundo, na esperança de um dia poder retornar à terra que amou desde pequeno e partia, muitas vezes ou quase sempre, numa viagem sem volta.

A viagem era árdua. Passavam sede e fome. Quando superavam o calor massacrante das estradas, adentravam vilas e povoados, oferecendo seus serviços, deixando de lado a vergonha, mendigando, implorando por uma porção salvadora. Encontravam a hospitalidade e solidariedade sertanejas, mas por ali os recursos também eram escassos e tinham que prosseguir o caminho. Nos seus rastros, corpos inertes, esgotados, estendidos no chão. Os que conseguiram finalizar a proeza, no encalço da borracha ou na procura dos cafezais, transformaram-se em mão-de-obra barata para o progresso do Brasil.


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