No Rastro das Águas – Capítulo 18

(…)

A viagem era árdua. Passavam sede e fome. Quando superavam o calor massacrante das estradas, adentravam vilas e povoados, oferecendo seus serviços, deixando de lado a vergonha, mendigando, implorando por uma porção salvadora. Encontravam a hospitalidade e solidariedade sertanejas, mas por ali os recursos também eram escassos e tinham que prosseguir o caminho. Nos seus rastros, corpos inertes, esgotados, estendidos no chão. Os que conseguiram finalizar a proeza, no encalço da borracha ou na procura dos cafezais, transformaram-se em mão-de-obra barata para o progresso do Brasil.


Padrinho Tano terminou de selar o burro mulo, que, por ser mais resistente, era o mais adequado para a longa viagem. José tinha despertado cedo e ajudou-o na tarefa, esperando a hora da partida de seu pai. Era madrugada ainda, Antônio Bezerra rumou para se encontrar com uns amigos na Vila. De lá, partiriam para Natal, onde tinham negócios a tratar. José ficou esperando-o afastar-se; não via a hora de um dia também poder acompanhá-lo, mas essa hora já estava mais perto do que longe.

A viagem era longa e cansativa. Percorriam os centos e cinquenta quilômetros de Currais Novos a Macaíba, o lombo do animal, em estradas precárias de terra batida, parando nos pousos predeterminados, que recebiam os viajantes com toda a hospitalidade sertaneja. O tempo total da viagem era de três dias e meio até Macaíba; de lá tomavam o barco, que após um percurso de duas horas, aportava em Natal.

Paravam duas vezes ao dia, para descanso. A primeira parada era na Fazenda São Luiz, de Dona Marica Pegado, situada ainda no Município de Currais Novos, ao pé da Serra do Doutor; depois prosseguiam até o município de Santa Cruz, onde se arranchavam para dormir. Um dia mais e paravam para dormir em Caiada de Baixo, próxima dormida em Várzea, nas proximidades de Macaíba, onde chegavam depois de três cansativos dias, para tomar o barco e, finalmente, chegar a Natal.

Durante os pousos, podiam pôr em dia os mais variados assuntos. Todo e qualquer viajante que por ali passasse trazia e levava notícias. O maior comentário era sobre a seca que assolava a região, destruindo o rebanho, dizimando plantações, escorraçando e matando seu povo. Durante todo o trajeto, encontravam retirantes ao longo da estrada. A região iria demorar para se recuperar.

Outro assunto do momento era a Primeira Guerra Mundial, que já se desenrolava desde 28 de junho de 1914, em razão do assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, herdeiro do trono da Áustria-Hungria, pelo nacionalista iugoslavo Gavrilo Princip, em Sarajevo, na Bósnia, sendo o gatilho imediato da guerra, que resultou em um ultimato da Áustria-Hungria contra o Reino da Sérvia. Com a precariedade de comunicação, poucas notícias chegavam do confronto, mas isso não impedia discussões calorosas. Alguns duvidavam de que o Brasil entrasse na disputa, pregando a neutralidade de nossa pátria; outros defendiam a entrada do país na guerra. Mas todos concordavam em um ponto: avessos à farda, os seridoenses contavam com a ajuda dos coronéis para serem dispensados do serviço militar obrigatório e não tinham nenhuma vocação para guerrear, já bastavam as lutas que travavam constantemente com as forças da natureza.

Fugindo dos assuntos genéricos, Antônio confidenciou aos amigos que estava na hora de pôr seu filho para estudar. No início do ano seguinte, pretendia matriculá-lo no grupo escolar da vila de Currais Novos. Discutiram, então, a necessidade da educação na melhoria de vida do cidadão. As primeiras letras surgiam pela necessidade de demonstrar o poderio econômico, pois apenas os filhos dos ricos tinham acesso à escola, enquanto o filho do pobre não tinha direito ao estudo, sendo alfabetizado no trabalho do campo, onde era mão-de-obra necessária, indispensável às tarefas da fazenda. O filho do proprietário de terras era alfabetizado, mas poucas vezes era estimulado para prosseguir carreira de doutor, pois, geralmente, o pai contava com sua ajuda para administrar suas terras. Alguns argumentavam que isso estava mudando, enaltecendo a importância dos poucos que possuíam diploma de doutor.

Enquanto seu pai viajava, José permanecia na fazenda, não vendo a hora de sua chegada com as novidades da Capital. Era um dia de folia, com conversa no alpendre até mais tarde, dissertando sobre a viagem, os pousos, a vida em Natal, seus costumes e novidades.

Mas enquanto Antônio não chegava, José aproveitava para fazer o que sempre teve vontade. Iniciou com a montaria em osso e já ensaiava galopes relaxantes no solo da caatinga. Quando sentava na sela do cavalo, uma sensação de liberdade tomava conta de seu corpo, enquanto transparecia um certo ar de superioridade e amadurecimento. Procurava integrar-se ao animal, acompanhando-o na cadência dos movimentos. Como um cavaleiro experiente, adiantava-se para encostar o cavalo na porteira e abri-la. Esperava, agora, o momento de puxar o rabo do boi.

Quando seu pai retornou, duas notícias tomaram conta da casa: por causa da grande seca, em novembro, iriam passar uma temporada na vila de Touros e no ano seguinte seu filho iria começar os estudos. As novidades da Capital não tiveram muita repercussão. José passou a contar os dias para sua primeira longa viagem, mas também caçoava de Amália, porque passaria a estudar, numa clara demonstração de superioridade temporal.

Como que para demonstrar a seu pai que já estava com idade suficiente para enfrentar novos desafios, José mandou selar seu cavalo e mostrou, triunfante, seu estilo de montar. Seu pai elogiou-o, mas preveniu-o contra galopes e cavalos desembestados. O caminho era acidentado e uma queda poderia ocasionar graves ferimentos.

Confiante em sua pouca experiência, José passou a exibir-se. Numa dessas disparadas, caiu em cima das pedras em frente à casa antiga que agora era ocupada por Tano. Seu pai, com o espírito bonachão e brincalhão, depois de verificar a gravidade do ferimento, deu-lhe apenas uma chamada, pois a queda encarregava-se de dar-lhe uma lição. O tombo abriu uma ferida enorme no braço de José, que pela profundidade e falta de pontos no local, garantiu-lhe uma cicatriz pelo resto de sua vida.


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