No Rastro das Águas – Capítulo 28

(…)

Decidiu levantar a cabeça e os negócios. Seu pai era uma figura muito querida em seu meio e ainda podia contar com vários amigos influentes. Depois da estiagem de 1932, José foi convidado a trabalhar como agente da firma de exportação de algodão, Lafayette & Lucena, mantendo a antiga freguesia de seu pai, com quem se associava. A época coincidiu com a retomada da valorização do algodão, que passou a ganhar terreno no mercado externo. Devido à grave crise americana, os Estados Unidos criaram o plano de revitalização, “New Deal”, que limitou a produção agrícola, fazendo subir, artificialmente, os preços dos produtos. Em consequência, o algodão norte-rio-grandense abocanhou a fatia do mercado deixada pelos americanos, permitindo um novo surto de crescimento do algodão. José Bezerra soube aproveitar a ocasião, reerguendo os negócios de seu pai, com bastante equilíbrio. Combinou com seu pai a hipoteca das fazendas.


Desde que entrara no salão iluminado do Aero Clube de Natal, seus olhos só convergiam em uma direção. Aquela fisionomia não lhe era estranha; tinha a nítida sensação de não ser a primeira vez que a via, mas não conseguia se lembrar de onde.

A moça afilada, de nariz arrebitado, gestos educados e um certo ar de maturidade, que não conseguia esconder a inocência da idade, exalava a graciosidade de quem acabara de sair da infância; mas frequentar uma matinê, deveria ter, no mínimo, quinze anos.

José Bezerra, então com vinte e seis anos, rapaz formado e à frente dos negócios, não precisava de coragem para convidar uma moça para dançar. Ao contrário, muito seguro de si, dirigiu-se àquela encantadora senhorita e desculpou-se pelo atrevimento de convidá-la para dançar sem ao menos terem sido apresentados.

Diante de rapaz tão cativante e elegante, ela não pôde recusar o convite e logo estavam deslizando juntos com os outros pares, que animavam o baile promovido pela Associação Feminina de Atletismo – AFA, naquele 15 de novembro de 1934. Embalados pelo ritmo da música, fizeram as devidas apresentações.

Tratava-se de Yvete Carrilho de Sá, filha de Valdemar Dias de Sá e Dulce Carrilho de Sá, nascida em Ceará-Mirim, município do Rio Grande do Norte, região do vale do açúcar, onde anos antes José, ainda pequeno, passara a caminho de Touros. Ela estava em Natal, passando uns dias na casa de sua tia materna Vanju, na avenida Deodoro. No dia anterior, enquanto conversava na calçada, um rapaz elegante, com chapéu de palhinha, dirigindo o Chevrolet de um amigo, havia lhe chamado a atenção. Coincidentemente, estava deslizando em seus braços; parecia até um sonho, mas um sonho bem real que lhe provocava emoções desconhecidas.

José Bezerra vinha constantemente a Natal, estava conseguindo reerguer os negócios do pai. Na Capital, era hóspede de Dona Silvina, esposa de Dr. Juvenal Lamartine, filha do Coronel Silvino, seu tio-avô. Dr. Juvenal continuava exilado na Europa e José Bezerra compartilhava da amizade de seu filho Otávio.

Os passos no salão eram acompanhados de uma corrente eletrizante que fluía entre as mãos timidamente entrelaçadas. Um rodopio, um aperto mais forte, uma disparada nos corações, emoções percorrendo os corpos respeitosamente ritmados. Sensações esquisitas afloravam, mas não eram notadas pelos demais, a não ser por um discreto rubor das faces. As mudanças no repertório da orquestra serviam para despertá-los. Embevecidos, o tempo passou sem que eles percebessem e logo chegou a hora de ela retornar à mesa, onde sua irmã Ivone e seu noivo, Olavo Montenegro, a aguardavam.

Depois das primeiras trocas de palavras, José Bezerra lembrou-se da moça na calçada da avenida Deodoro. Fora lá que a tinha visto pela primeira vez. Enquanto a acompanhava até a mesa, pediu permissão para visitá-la e recebeu seu endereço. Durante o restante do baile, olhares encontraram-se, num flerte discreto.

Combinaram para se encontrar no dia seguinte, durante as comemorações da festa da padroeira de Natal, Nossa Senhora da Apresentação. As festividades prolongavam-se por toda a semana, culminando com a procissão, no dia vinte e um. Os encontros foram-se intensificando e uma admiração mútua concretizou-se. Passavam horas a fio conversando nos passeios de bonde, que faziam a circular Aero Clube – Praia, atravessando o centro da cidade. A maior parte da conversa girava em torno da política.

Os pensamentos tinham um ponto em comum: ambos apoiavam o recém-fundado Partido Popular, opositor ao Governo Vargas. De uma maneira ou de outra, quer fosse na figura do agropecuarista sertanejo, quer fosse na representação da cana-de-açúcar, eles faziam parte da classe agrária, que tinha perdido o poder na Revolução de 1930.

Em nível nacional, o ano de 1934 estava aparentemente tranquilo no campo da política. A Segunda República estava consolidada. Em 1932, houve uma reação de São Paulo, através da Revolução Constitucionalista, que logo foi debelada. Como consequência, em 1933 foi eleita a Assembleia Nacional Constituinte. Em 16 de julho de 1934, foi aprovada a nova Constituição do Brasil, que legalizou os revolucionários no poder.

Em nível estadual, o clima não era tão tranquilo. Foram realizadas, em outubro, eleições diretas para a Assembleia Legislativa, que elegeria o próximo governador do Estado. O Partido Popular, opositor ao interventor Mário Câmara, saiu vitorioso. Houve protesto e em alguns municípios as eleições foram anuladas, sendo marcada nova data para realizá-las. As disputas estavam acirradas.

Num dos passeios pelo bairro da Ribeira, onde a sociedade se encontrava, o casal passou por uma situação de aperto. Tinham combinado de se encontrar na sorveteria Eldorado, de propriedade de Tasso Brandão, que ficava na Dr. Barata, em diagonal com o jornal A Razão, porta-voz do Partido Popular. Yvete foi acompanhada de Ivone, sua irmã, e mal tinham chegado, avistaram uma ruidosa multidão que vinha da avenida Tavares de Lira, em direção ao jornal. À frente da multidão, Benedito Saldanha comandava o protesto. Empastelaram o jornal; o quebra-quebra foi tão grande que alguns funcionários, como Alcebíades Fernandes e Aécio Chacon, tiveram que sair pulando a janela. José Bezerra teve que alugar um automóvel para retirar, apressadamente, as moças do local.

As discussões políticas dominavam o casal de namorados e José Bezerra deparou-se e até encantou-se com a atitude, um tanto quanto avançada, de sua nova namorada. Mas a época era favorável à participação feminina na política. O Estado do Rio Grande do Norte tinha sido pioneiro no voto feminino, mas só agora a nova Constituição Federal instituíra o voto secreto e feminino, em nível nacional.

Lá com seus botões, José Bezerra relembrou uma atitude conservadora que tomara recentemente. Entre o intervalo do rompimento do noivado com a senhorita Dulce Verneck e o encontro com Yvete, ele tinha sido namorado de Noelma Lucena, porém terminara o namoro porque tinha se deparado com ela dirigindo um automóvel – não admitiria tanto modernismo. Chegou o dia de Yvete retornar a Ceará-Mirim e ele a Currais Novos. O moço elegante, viajado e conservador do sertão norte-rio-grandense provocou um interesse crescente na jovem senhorita. E ela, com seus ideais avançados, posto que vinha de uma região onde as transformações se processavam mais rápido, despertou admiração recíproca. O encantamento de José Bezerra pelos canaviais, que permaneceu tanto tempo adormecido, veio aflorar na pele de Yvete. Os encontros passaram a ser nos finais de semanas, quando ambos estavam na Capital. Rapidamente, em 11 de janeiro de 1935 selaram o compromisso de noivado.


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