No Rastro das Águas – Capítulos 32 e 33

PARTE DOIS: ALÇANDO VOOS MAIS ALTOS (1936-1966)

Capitulo 32

Após o jantar, a quietude tomava conta de Currais Novos. O movimento já diminuto de cidade de interior, reduzia-se ainda mais. Apesar do calor fustigante durante o dia, o clima amenizava-se à noite. Era uma boa hora para uma conversa entre amigos e familiares, aproveitando a luz do motor, que permanecia acesa até às vinte e três horas. O paleio fazia as vezes do rádio, ainda inexistente no município.

José Bezerra apreciava uma boa conversa e costumava frequentar a casa de seu avô, Manoel Salustino. Era lá que estava quando recebeu um telegrama urgente. Um pouco apreensivo, já imaginava do que se tratava. Leu apressadamente seu conteúdo, expressando um sorriso aliviado. Confirmara sua previsão: às dezoito horas daquele dia, Yvete deu à luz ao seu primogênito, na cidade de Ceará-Mirim. Mãe e filho passavam bem. Como todos moravam bem próximos, logo toda a família congratulava-se com o novo pai. A casa do jovem casal ficava quase vizinha à casa grande de Antônio Bezerra, que tinha ficado para Amália, depois da morte de D. Ritinha.

Após a Intentona Comunista, José Bezerra passou uma temporada em Muriú, relaxando e revigorando suas energias. Yvete, já bem pesada, combinara com ele para ter a criança em Ceará-Mirim, junto à sua família. Afinal, com a morte da sogra, ela não contava com nenhum apoio feminino em Currais Novos. Ao lado de D. Dulce, sua mãe, se sentiria mais protegida e teria os cuidados de Dr. Olavo Montenegro, médico e esposo de sua irmã.

Embora um pouco relutante, José Bezerra concordou com a proposta de sua jovem esposa. Mas, no fundo, preferia que seu filho nascesse no Seridó, como todos os seus antepassados. Quem mandou se encantar e casar com moça do litoral? Tinha que se conformar e aceitar a mudança. Como ambos possuíam boa formação, o fruto desse amor, nascendo no sertão ou no litoral, teria fortes raízes.

Enquanto providenciava sua viagem a Ceará-Mirim, sentiu saudades de sua mãe, que partira tão nova sem conhecer um neto sequer. Mandou avisar a seu pai, Antônio Bezerra, que desde que ficara viúvo, passara a residir na fazenda Cacimba do Meio e aguardava ansioso para ser avô. As emoções vividas por seu pai, agora se repetiam na sua pele.

Quando anos antes, Antônio Bezerra, aos dezenove anos, tivera seu primeiro filho, o tempo era bem diferente. Muito jovem e inexperiente, ele tinha passado sua vida praticamente restrito às terras seridoenses e à alegria de ser pai misturou-se um forte sentimento de apreensão. José Bezerra, ao contrário, aos vinte e sete anos, já passara por situações tão diversas, que lhe garantiam uma certa tranquilidade: considerava o parto como um ato puramente feminino, que devia ser encarado com naturalidade. Tanto assim, que se encontrava em sua terra natal, mesmo sabendo que sua esposa estava prestes a ser mãe. Confiante de que ela estava em boas mãos, permaneceu em Currais Novos, cuidando de seus afazeres.

Desde julho do ano próximo passado, que se mudara para a casa recém-construída, defronte ao mercado público, bem no centro da cidade. Com o casamento, tinha decidido deixar o comércio do algodão; aliás, só permanecera nesse ramo para saldar as dívidas de seu pai. Aprendera muito bem a lição de sertanejo e preferia lidar com a terra e com o gado. Tanto assim, que logo em agosto de 1935 comprara a fazenda Jaú, em Santana do Matos, município vizinho.

Aliado ao fato de sua preferência pela terra, o comércio do algodão passava por um período de transição. Com a crise do café, São Paulo voltou-se para a cotonicultura. O ouro branco tomou conta dos campos paulistas. O Nordeste continuava a suprir a lacuna deixada pelos Estados Unidos, após 29, agora dividindo o mercado com São Paulo. As exportações internacionais nordestinas consolidaram-se, atraindo as grandes multinacionais do setor e, com a chegada destas, a comercialização sofreu alterações. Além da pluma, surge o interesse pelo caroço, para produção de óleo e de torta, aumentando, assim, o aproveitamento do algodão.

Além dessa alteração, os Estados Unidos partem para a ofensiva, a fim de retomar seus antigos mercados. Expandem sua produção, melhoram a qualidade de seu produto, subsidiam seus produtores, aumentam sua produtividade. A competitividade acelera-se e para que o algodão nordestino mantenha sua posição mundial, é necessário, principalmente, uma melhor padronização de sua pluma. As antigas bolandeiras e mesmo os descaroçadores passam a ser substituídos por pequenas usinas de beneficiamento de pluma, que se instalam nos núcleos urbanos do interior e vendem o caroço para as novas fábricas de óleo e torta. Nesse contexto, as firmas exportadoras que não entraram no ramo do beneficiamento são excluídas do mercado, como é o caso da firma Lafayette & Lucena, que tinha dado tanto apoio a José Bezerra, mas entra em crise, sendo esmagada pela força dos grandes grupos.

As condições do mercado estimularam José Bezerra a abandonar o comércio, não sem antes deixar acertado o pagamento da hipoteca das fazendas de seu pai com a firma Wharton Pedroza S/A, no montante de duzentos e quatro contos de réis, que negociou para quitação em cinco anos: de 1938 a 1942.

Tinha tomado uma decisão acertada. Voltou-se para o manejo do gado. Adquirira a fazenda Jaú, com trezentas reses. O local não era apropriado ao cultivo do algodão, mas favorável à pecuária. Semanalmente, ou mesmo quinzenalmente, dirigia-se a cavalo para a fazenda, subindo pela Serra de Santana. No caminho, uma parada na Cacimba do Meio. Fazia questão de aprimorar seus conhecimentos com o experiente Padrinho Tano. Depois de longos anos no trato do rebanho, ele era capaz de dar o peso de cada rês, valendo-se apenas da precisão ocular. A pelagem do gado, a capacidade de engorda, o cercado utilizado, a friagem, a água, tudo era indicativo para uma boa pesagem, auferida na hora do abate. Os criadores faziam fama e disputavam o rebanho mais pesado. Padrinho Tano, já em idade avançada, gostava de testar os conhecimentos de seu afilhado. Deixando de lado a lida com os animais, relembravam acontecências passadas.

Com tudo isso gravado em sua mente, José Bezerra preocupava-se, agora, com a chegada de seu primogênito. Não sabia se ele teria um mestre como Padrinho Tano, nem mesmo se seria ligado à terra como seu pai. Já nascera longe do Seridó, mas com uma boa orientação, faria valer suas raízes. Com esta preocupação, partiu ao encontro do novo membro da família. Acostumado à estrada, em pouco tempo estaria ao lado de Yvete.


Capítulo 33

Naquele dia, o rádio permaneceu calado. Desde quando a voz do locutor César Ladeira, transmitindo o noticiário da Revolução Constitucionalista de 1932, penetrara no salão daquela residência, mesmo em meio ao chiado costumeiro, era a primeira vez que o enorme aparelho ficava desativado, excetuando-se as vezes em que a bateria não funcionou, a válvula queimou ou as transmissões foram interrompidas.

Ninguém tinha tempo nem espírito para debruçar-se na frente do rádio. O nervosismo tomava conta de todos. Yvete entrara em trabalho de parto. Sua mãe tratou de acomodá-la da maneira mais confortável possível. Chamou imediatamente seu genro, Dr. Olavo Montenegro, casado nem bem fazia quinze dias, médico policlínico do município, e a parteira Maria Correa. Mesmo estando em boas mãos, D. Dulce estava apreensiva. Muito cavilosa, não queria nenhum sofrimento para sua filha, quase uma menina.

Yvete tentava não demonstrar apreensão, mas no seu íntimo as emoções se avolumavam. A cada contração, a dor, o medo, a dúvida, a curiosidade e a vontade de ver aquele rostinho cresciam em seu interior. A presença de Olavo garantia tranquilidade, mas o pudor conseguia, em alguns momentos, desvanecer os sinais evidentes da hora esperada. Se assuntos dessa natureza eram tratados com muito recato entre mãe e filha, imagina entre a paciente e o doutor, ainda mais sendo ele o marido de sua irmã. Yvete rezava para dar à luz ligeiramente. Sentia a ausência de José, mas seus pais faziam todos os paparicos, para que ela não se sentisse desamparada.

Na residência deles, o movimento era intenso. A parteira fazia o trabalho, mesmo não simpatizando com a presença do médico, afinal já fizera os partos de inúmeras crianças, sem precisar da ajuda de doutores. O parto não foi fácil, mas finalmente puderam escutar o choro forte de um menino. Estavam às dezoito horas do dia 29 de fevereiro de 1936.

A apreensão da jovem mãe dissipou-se. Ao ver aquela criatura tão pequenina, que tinha sido gerado em seu ventre, demonstrando todos os sinais de boa saúde, um alívio tomou conta de seu ser. Uma sensação de leveza apagou rapidamente os momentos de angústia, mas logo transformou-se em sentimento de perda. Durante nove meses, tinha partilhado seu corpo com o filho. O crescimento da barriga, os primeiros movimentos, os chutes constantes e até as posições para melhor se acomodarem, criavam uma cumplicidade ímpar entre mãe e filho. De repente, cortam essa ligação e aquele pequeno e inocente ser parte deixando um vazio em sua geradora. Estará livre para desenvolver-se.

Ao deparar-se com o filho tão esperado, ela alivia-se. Pôde, enfim, ver e tocar aquele que fora seu cúmplice durante os nove meses. Procura semelhanças, semblantes familiares, gestos conhecidos. Pura expectativa de mãe, em busca da satisfação de sua curiosidade. Os sentimentos se confundem e explodem em alegria contida. Yvete logo se anima e pede para que avisem a seu marido. Essa providência já tinha sido tomada e ele já devia estar a caminho. A questão agora ia ser a escolha do nome de seu primogênito.

A sugestão de D. Dulce prevalece e Haroldo de Sá Bezerra é o nome escolhido para o primeiro filho de José e Yvete. Nascido num dia singular do calendário, que só acontece de quatro em quatro anos, certamente será uma pessoa especial. José Bezerra logo chega a Ceará-Mirim, para compartilhar com sua família a alegria de ser pai. Embora seco, reage com muito entusiasmo diante de seu filho. A emoção de ser pai era indescritível, mas permaneceu guardada em seu íntimo.

O resguardo é mantido durante os trinta dias, sem necessidade de isolamento da mãe ou da criança. A assistência de Dr. Olavo garante a tranquilidade da família. Os ensinamentos da medicina permitem um quarto arejado, roupas leves, um banho de sol matutino. Haroldo desenvolve-se à custa, apenas, do leite materno. D. Dulce estranha o procedimento e introduz um suco de laranja, que resulta numa inesperada diarreia.

Os trinta dias logo se passam, para tristeza dos avós maternos, que logo serão privados da companhia de seu primeiro neto. Os paparicos aumentam e a saudade começa a bater. Em abril, Yvete e José Bezerra retornam a Currais Novos. Vão ao encontro de Antônio Bezerra, aflito para conhecer seu primeiro neto. Seu temperamento alegre e brincalhão ressurge com toda força. Seu encantamento é visível, bem mais perceptível do que o de seu filho. Nesse aspecto, José Bezerra era bem mais parecido com sua mãe. Haroldo veio dar novo ânimo à vida de seu avô paterno, que desde muito cedo demonstrava especial carinho para com as crianças.


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