No Rastro das Águas – Capítulos 42 e 43

(…)

No dia 20 de fevereiro de 1943, Eleika veio ao mundo. A alegria de sua chegada foi abafada pela morte de Antônio Bezerra, que faleceu em Currais Novos, quatro dias após o nascimento de sua neta. A cirrose venceu a guerra. Triste e abatido, José Bezerra só conheceu sua filha após a cerimônia do enterro. Aos trinta e quatro anos, sentiu profundamente a ausência de seus pais, que partiram tão cedo, vítimas de doenças distintas. Graças aos ensinamentos transmitidos por eles, podia caminhar com seus próprios pés. Com a família crescendo, esperava desempenhar, com a mesma desenvoltura, a lição apreendida. Yvete sentiu bastante a morte do sogro. Identificava-se com ele, admirava seu jeito brincalhão e extrovertido. Um vazio tomou conta de seu ser. Observando sua filhinha, lembrou-se da predileção que ele dedicava a Haroldo. Tão logo restabeleceu-se, retornaram a Currais Novos.


Capítulo 42

Ao deparar-se com o riacho, aquele homem simples estancou de repente e arregaçou as pernas da calça. Atendendo ao seu sexto sentido, ao invés de prosseguir o caminho, decidiu seguir o rumo das águas, que corriam mansamente, depois do aguaceiro que desabou. Com os olhos grudados no chão, observava os pedregulhos descobertos pela força da chuva de dias atrás, repousando sob ás águas rasas e transparentes. Um seixo branco lhe chamou a atenção. Abaixou-se e retirou-o da água. Notou que pesava mais que as pedras de mesmo tamanho. Poderia estar diante da tão famosa scheelita. Desabou na carreira, para comunicar sua descoberta ao patrão, o juiz Tomaz Salustino, proprietário do sítio Brejuí.

Seu morador tinha razão: após o resultado da análise da pedra branca e pesada, realizada em Campina Grande, na Paraíba, constatou-se a existência de scheelita em suas terras. Dr. Tomaz Salustino tomou as providências necessárias e solicitou autorização para a pesquisa e lavra de prováveis jazidas, caminho certo para a descoberta da mina Brejuí. A notícia atraiu garimpeiros.

Ainda de luto pela morte de seu pai, José Bezerra animou-se com a constatação de uma mina de scheelita nas terras de seu tio materno. As esperanças de seu povo não foram em vão. Um novo produto econômico juntava-se ao algodão e ao gado, para garantir o sustento dos currais-novenses. Homem de iniciativa, Dr. Tomaz Salustino não podia perder tempo, tinha que aproveitar a grande procura pelo tungstênio e acelerar as atividades de extração, para abastecer o mercado. Foi um pioneiro em seu tempo e logo estava entregando as primeiras levas do minério a uma comissão de compra do governo americano, sediada em Campina Grande, e que percorria o interior da Paraíba e do Rio Grande do Norte à procura de minerais estratégicos para o suprimento da indústria no esforço de guerra.

Satisfeito por seu município inserir-se no conflito mundial como fornecedor de matéria-prima para a indústria bélica, José Bezerra veio à Capital. A tristeza pela morte do pai amenizou-se junto ao clima contagiante da cidade. Estavam em 1943, Natal fervilhava. Os rumos da Segunda Guerra Mundial pareciam inverter-se. As forças anglo-americanas estavam conseguindo retomar a África do Norte, através do Egito, de onde partiriam para conquistar a Itália. A União Soviética avançava na direção oeste. A toda hora partiam aviões americanos, com destino a Dakar, primeiro ponto alcançado do continente africano.

Natal, capital de um estado pobre nordestino, passou a receber visitas importantes. Em janeiro, recepcionara, numa viagem mantida em segredo, nada menos que os Presidentes do Brasil e dos Estados Unidos. Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt encontraram-se em solo norte-rio-grandense. Além deles, várias figuras importantes pousaram nestas paragens. Eleonora Roosevelt, de passagem para África, Humphrey Bogart e Fredric March, para alegrar os oficiais americanos, foram algumas dessas visitas ilustres. Os Estados Unidos adotaram o costume de amenizar a dureza da guerra com a presença de artistas famosos nas bases militares. Astros e estrelas de Hollywood vinham incentivar seus heroicos soldados para enfrentarem os horrores de uma guerra.

A U.S.O., entidade que reunia os oficiais americanos, promoveu seu primeiro baile na Capital. O sucesso foi tão grande que garantiu suas próximas edições. José Bezerra e Yvete aproveitaram a oportunidade para relaxar da fase ruim por que tinham passado nos últimos meses. Eles faziam questão, assim como toda a população, de vivenciarem todos os acontecimentos. Foi assim que terminaram por alugar o Dodge, adquirido em 1941, para servir a um major americano.

Na verdade, toda indústria americana estava voltada para o setor bélico. A fabricação de automóveis de passeios foi limitada e não era fácil encontrar carros disponíveis. Além do mais, vigorava, em Natal, um rígido racionamento de combustível que permitia que apenas os carros militares e alguns poucos particulares, que dispunham de um distintivo, pudessem ser abastecidos. Para ser simpático, já que não tinha acesso à cota de combustível, José Bezerra uniu o útil ao agradável e alugou seu carro.

Seu sogro, Valdemar de Sá, dono de engenho, gostava de fazer amizades e já se entrosara com alguns oficiais. Graças a essas amizades, podia dispor do distintivo de industrial, que garantia a cota de combustível, e ainda comprar em alguns empórios comerciais americanos. Na casa de seus pais, Yvete degustava o sabor da baunilha em pó, de queijos com sabores bem diferentes dos nossos, de confeitos para os meninos e de outras novidades trazidas pelos americanos.

As vantagens para Natal, pelo fato de sediar uma base americana, estavam em toda parte. O afluxo monetário deu novo impulso à economia. Parnamirim já estava ligada à Capital por uma estrada totalmente asfaltada. Os comerciantes locais aproveitavam a oportunidade e ganharam bastante dinheiro. Estavam galgando espaço para, mais tarde, fazerem parte da elite, que, até então, era formada apenas por representantes da classe agrária.

Os abrigos antiaéreos estavam prontos. Os exercícios de black-outs continuavam, mas já não assustavam como antes. O medo de possíveis ataques diminuía, à medida que os Aliados venciam novas batalhas. No Brasil, em agosto de 1943, Getúlio Vargas criava a Força Expedicionária Brasileira – FEB, que arregimentava homens para servirem na guerra. Ainda em 1943, os Aliados conquistaram a Itália, derrotando e prendendo Mussolini. Em Teerã, num encontro histórico, Roosevelt, Churchill e Stálin preparam a invasão da Normandia. O III Reich via diminuídas suas chances de dominar o mundo.

Até então afastado dos combates, o Brasil agora entraria, de fato, no conflito armado. Os brasileiros passaram a viver o dilema de servir ou não à pátria. Muitos alegavam que aquela não era uma guerra nossa; como entraríamos sem justa causa, trataram de organizar a estratégia para não serem alistados. Qualquer motivo servia: desde um casamento às pressas, até a introdução de alho o orifício das partes baixas no dia anterior ao alistamento, o que provocava estado febril e, portanto, a dispensa pretendida. Outros apelaram um pouco mais tarde e, já na partida dos navios que levavam os bravos heróis, sentindo a saudade do Potengi dominá-los, pularam de encontro ao rio salvador. Os que não conseguiram esquivar-se, partiram com destino aos intensos preparativos que se prolongaram até julho de 1944, quando partiu o primeiro escalão com destino à Europa. Avessos a conflitos armados, os brasileiros iriam enfrentar os horrores da guerra.

Em meio ao conflito mundial, a política estadual passava por um momento de transição. A presença maciça de militares brasileiros na Capital fez com que o General Gustavo Cordeiro de Farias pressionasse o Presidente Getúlio Vargas para destituir o Interventor civil, Dr. Rafael Fernandes, e nomear um militar para o cargo. Aliado a esse fato, o então Interventor não apresentava boas condições de saúde e o Presidente acabou cedendo, em parte, à pressão dos militares. Ao invés de nomear o General Gustavo Cordeiro de Farias, optou por um nome potiguar e no dia 03 de julho de 1943, o General Antônio Fernandes Dantas, que tinha sido comandante da polícia militar estadual no governo de Dr. Juvenal Lamartine, assumia o governo do Rio Grande do Norte, como 7º Interventor Federal. Acabava, então, o mais longo período administrativo de um único governante no Estado. Dr. Rafael Fernandes assumiu como Governador, eleito indiretamente, e saiu como Interventor, perfazendo um total de sete anos e oito meses à frente da administração estadual.

O caso repetiu-se de uma forma diferente poucos meses depois, em Currais Novos. Desde o ano anterior que José Bezerra vinha pensando em deixar a Prefeitura. Completara seis anos à frente da administração e o Estado Novo prosseguia sem muitos abalos. Com a morte do pai, herdara as fazendas Cacimba do Meio e Quinquê. As responsabilidades aumentaram e o trabalho no campo lhe aguardava.

Os anos passados à frente da Prefeitura, caracterizaram-no como um conciliador. Esteve sempre acima das intrigas políticas e das fofocas, tanto assim que permaneceu tanto tempo no cargo, mesmo não sendo partidário do Presidente Getúlio Vargas. A sua administração foi marcada pela probidade e pelo equilíbrio nas finanças municipais. Com sua fama de pão-duro, preferiu manter as atividades costumeiras, que arriscar-se em obras sem disponibilidade suficiente para financiá-las. O zelo com o dinheiro público era o mesmo dispensado a suas finanças particulares. Seu sucessor iria encontrar a Prefeitura com bastante dinheiro em caixa.

Comunicou sua decisão ao Interventor e pediu que um novo Prefeito fosse nomeado. Em 2 de outubro de 1943, Antônio de Vasconcelos Galvão assumiu a Prefeitura de Currais Novos. José Bezerra entregou o cargo aliviado; estava cansado, mas ciente do dever cumprido. O sangue de seu avô corria em suas veias e, mesmo depois de afastar-se do cargo, manteve, por um longo período, uma liderança política no município. A previsão confirmou-se: depois de entrar na política será difícil largá-la.


Capítulo 43

O cacarejo de uma galinha despertou-o de seus pensamentos. As meninas correram em direção ao barulho, para retirarem o ovo do ninho, provocando uma algazarra, respondida pelo gluglu dos perus. José Bezerra estava em estado de torpor. Com o término do inventário, retornava às raízes e assumia a fazenda Cacimba do Meio, lugar onde nasceu e cresceu. Ao entrar na casa grande de paredes sólidas, foi dominado por um estado de melancolia. Uma retrospectiva de toda sua vida passou num rápido lampejo. Os personagens principais estavam ausentes, mas as suas marcas estavam impregnadas no ar. Os lugares preferidos de Antônio Bezerra, os móveis de D. Ritinha, tudo fazia lembrar-lhe dos anos vividos na companhia dos pais.

Diversas lembranças vieram à tona: ainda bem pequenino, ajudara a carregar as panelas na mudança; ao ver seus filhos no terreiro, não pôde esquecer as travessuras que aprontara com Sinhá Cândida; os primeiros galopes na caatinga; o estrondar dos trovões no pé da serra; as primeiras pegas de boi; o aprendizado com Padrinho Tano. O sorriso constante de seu pai não ecoava naquele alpendre, nem os ensinamentos severos de sua mãe, mas se perpetuaram na sua personalidade e agora ele tentava transmiti-los a seus filhos.

A casa permanecia viva na presença dos novos moradores. Velhos costumes seriam mantidos e novos comportamentos passariam a fazer parte do cotidiano. Amália e Janot, seus irmãos, tomaram rumos diferentes. A herança, tão importante para os seridoenses, que tanto podia assegurar um excelente patrimônio, como dividir os já minguados pedaços de chão, fizera com que Janot ficasse com a fazenda Macacos e Amália com a metade do Quinquê e da Cacimba do Meio, compradas posteriormente por José Bezerra.

O número de filhos aumentara de uma geração para outra. Enquanto Antônio Bezerra tivera apenas três crianças criadas, José Bezerra já possuía cinco, que brincavam alegremente no terreiro, gostavam do contato com a terra e estavam entusiasmadas com a temporada que iriam passar na fazenda, tanto assim que nem perceberam a tristeza do pai, nem José Bezerra deixou transparecê-la. Pondo-a de lado, retomou as atividades. Seus planos incluíam a transferência de Antônio Cândido do Jaú para Cacimba do Meio. Pouco a pouco, ele tornava-se seu fiel escudeiro. As relações de trabalho misturavam-se às de amizade. Os dois só não concordavam no posicionamento político. Não é que seguissem diferentes partidos, mas Antônio Cândido era exaltado demais, quando a questão era política. Brigava por seu candidato, insultava os adversários, enquanto que José Bezerra adotava uma postura menos radical.

A transferência logo concretizou-se. Em pouco tempo, Antônio Cândido estava integrado às novas atividades. Diferentemente do Jaú, na Cacimba do Meio compartilhava-se a criação de gado e o cultivo do algodão. As safras de 42 e 43 não foram boas, por causa das condições climáticas, mas naquele ano a chuva estava ajudando e tinham que recuperar a produção. A vida na fazenda, pouco a pouco, organizava-se. Fora daquele mundo, marcado pela tranquilidade, os homens digladiavam-se, mas as batalhas só chegavam ao campo para animar as conversas, à noite, nos alpendres.

José Bezerra passou a dividir seu tempo entre a zona urbana e a rural de Currais Novos. Juntamente com Yvete e os filhos, permaneciam na fazenda por alguns meses e, portanto, acharam por bem contratar uma professora particular para os meninos. Em pouco tempo, já tinha retomado sua alegria costumeira. Quando não estava na fazenda Cacimba do Meio, era certo encontrá-lo nos armazéns que ficavam próximos à sua casa na “rua”, confabulando com os amigos ou aprontado uma das suas.

Seu espírito presepeiro fazia algumas vítimas. Yvete possuía em casa uns globos de vidro que os transformara em aquário, onde inocentes piabas nadavam e entretinham os meninos. Ao sair com destino ao armazém de Tomás Fidélis, José Bezerra meteu a mão dentro do aquário e carregou uma piaba escondida. Lá chegando, colocou-a, discretamente, dentro de um balde de leite, que tinha acabado de chegar da fazenda Cacimba do Meio. Fez sua arte e ficou aguardando. Quando Tomé Fidélis foi coar o leite, a piaba saltou alegremente no pano de algodão. Constrangido, ele rapidamente tratou de escondê-la, não queria que os outros soubessem que José Bezerra, um homem tão respeitado no município, estava colocando água no leite, ainda mais numa quantidade tão grande que trazia até piaba.

Diante de seu embaraço, José Bezerra, fazendo-se de inocente, perguntou o que tinha acontecido, porque a cara do amigo era de quem tinha visto alma de outro mundo. Tomás Fidélis desconversou, estava ao mesmo tempo surpreso e decepcionado diante de uma atitude pouco recomendada, principalmente, vinda de um homem tão íntegro e respeitado. José Bezerra ainda curtiu um pouco o embaraço do amigo, até revelar a sua traquinagem.

Muito arteiro, nem bem tinha esquecido o caso da piaba, deparou-se com uma situação que terminaria por causar nova vítima. Numa de suas viagens de Natal para Currais Novos, atropelou uma raposa, que ficou desacordada no meio da estrada. Ele não contou conversa, desceu do carro, verificou se a coitada ainda estava viva, colocou-a dentro do porta-malas e prosseguiu a viagem. Assim que chegou em Currais Novos, encontrou o povo na rua, em procissão religiosa. Muito sério, ele chamou seu amigo Jaime Xavier e pediu que retirasse do porta-malas uma encomenda que lhe trazia. Prontamente seu amigo abriu a mala do carro e qual não foi o susto que tomou quando a raposa, já restabelecida, saltou assustada em sua direção e debandou numa carreira desenfreada por entre os fiéis. Além do susto que levou, Jaime ainda teve que sair no encalço da raposa, para que ela não fizesse mais nenhuma vítima, além dele próprio.

Mas seus amigos também iam à desforra. Certa vez, cansado de cair nas presepadas de José Bezerra, Jacó Pires resolveu dar-lhe o troco. Quando soube que ele estava de mala pronta para mais uma de suas incansáveis viagens, arrumou um pacote e colocou-o, sorrateiramente, dentro da mala. José Bezerra chegou a seu destino, sem nada desconfiar; precisou trocar a roupa e qual não foi sua surpresa e seu destempero, quando abriu a mala e deparou-se com o cheiro horrendo impregnado na roupa. Bem no meio dela, estava uma cebola cortada, exalando um odor insuportável. A roupa precisou ser muito bem lavada para o cheiro desagradável sumir. A desforra foi bem preparada, ponto para Jacó Pires.

E assim ele ia levando a vida. Em meio à seriedade costumeira, principalmente quando tratava de negócios, sempre achava um tempinho para as brincadeiras com os amigos. Divertia-se bastante nesses casos e não desperdiçava uma boa oportunidade para armar das suas. Essas brincadeiras serviam até para desanuviar o clima tenso dos últimos dias da guerra, que continuava, infelizmente, a fazer vítimas.


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