No Rastro das Águas – Capítulos 50 e 51

(…)

O tempo passou rapidamente e em 11 de agosto o navio Bretagne aportou na Baía de Guanabara. Felizes por chegarem ao Brasil, depois de tanto tempo fora de casa, Yvete e José ansiavam por chegar logo a Natal; antes, porém, passariam alguns dias na Capital Federal. Logo no desembaraço alfandegário, puseram-se a par das notícias. A situação era delicada e não sabiam ao certo se era conveniente permanecerem no Rio de Janeiro.


Capítulo 50

Não era só a Argentina que passava por um momento crítico. Enquanto os participantes da excursão do Automóvel Clube do Brasil descobriam as maravilhas do Velho Continente, a situação política do país era bastante tensa.

A cada dia aumentava a fileira de descontentes com a política do Presidente Getúlio Vargas, já em seu quarto ano do segundo período administrativo. As críticas vinham dos mais diversos setores, desde a esquerda até os militares. No ano anterior, enfrentara a campanha da Panela Vazia, caracterizada como um protesto à carestia, e uma greve que mobilizou aproximadamente trezentos mil operários. O líder populista e carismático, que tantas vezes recebera o apoio das massas trabalhadoras, enfrentava a força de seus protestos. A conjuntura brasileira e mundial era bastante diferente da verificada no seu primeiro governo.

Naquela época, o totalitarismo vigente em vários países europeus possibilitou a implantação de uma ditadura. Com o poder absoluto, Vargas pôde governar como bem quis. Usando de seu carisma e do controle rígido sobre os sindicatos, reunia multidões e demonstrava sua força de sustentação defendendo os interesses nacionais. O populismo tinha nele seu grande representante.

No presente, o quadro apresentava-se bastante diverso. A Segunda Guerra Mundial tinha modificado o panorama mundial, a democracia derrubara os antigos regimes totalitários da Itália e da Alemanha e, por consequência, o do Brasil. Os Estados Unidos e a União Soviética (sob regime totalitário) dominavam o mundo com políticas imperialistas, dividindo-o entre capitalistas e comunistas. Fortalecidos e ricos, os Estados Unidos financiavam a reconstrução dos países destruídos pela guerra e infiltravam seu capital nos países em desenvolvimento, incrementando as divisas americanas. Nesse contexto, Getúlio Vargas tinha que fazer valer sua habilidade de articulador para acomodar interesses contrários.

As medidas implantadas na área trabalhista, que garantiriam direitos essenciais aos trabalhadores, por si só não eram suficientes para sustentar o seu apoio. A inflação disparava, corroendo o poder de compra dos salários e a conquista dos direitos trabalhistas era uma etapa vencida. O trabalhador lutava agora por salário digno. Aproveitando a insatisfação da classe operária, a esquerda criticava o controle exercido pelo governo sobre os sindicatos.

Em 1953, o Presidente, defendendo os ideais nacionalistas, criou a Petrobrás, empresa pública encarregada de explorar o petróleo brasileiro. Praticava, assim, uma das bandeiras defendida pelo populismo, que também não estava isenta de críticas, pois nem todos a aceitavam. A oposição defendia a associação ao capital estrangeiro para financiar o desenvolvimento do país.

Como figura destacada da oposição, o jornalista e Deputado pela UDN, Carlos Lacerda, orador eloquente, utilizava o rádio, a televisão e as páginas do jornal Tribuna da Imprensa para denunciar os casos de corrupção, o tráfico de influência e a inflação galopante, com discursos e pronunciamentos inflamados. Sua eloquência incomodava e, poucos dias antes, fora alvo de um atentado na rua Toneleiros, onde morava no Rio de Janeiro. Os disparos acertaram-no sem muita gravidade, mas vitimaram o Major da Aeronáutica, Rubens Vaz, que estava sem sua companhia. Carlos Lacerda aproveitou o atentado para acirrar suas críticas; no papel de vítima, recebeu o apoio maciço da população. Os militares, que não estavam contentes com o governo Getúlio Vargas, aproveitaram para apurar o crime, instalando-se na Ilha do Governador e implantando um governo paralelo, denominado República do Galeão.

Foi em meio a este grande tumulto, que os tranquilos turistas desembarcaram na Capital Federal. Encontraram o país em polvorosa e, assim que puderam, dois dias após a chegada ao Brasil, retornaram para Natal. José Bezerra, mesmo sendo opositor ao governo Vargas, considerava Carlos Lacerda um radical; preferia um estilo mais moderado, e comentou com Yvete, admiradora inconteste do Deputado, que ele quase fora assassinado por causa de seus exageros. Mal tinham matado as saudades de todos e de casa, o país foi surpreendido com a conclusão do inquérito que apurou o assassinato do Major Vaz: Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do Presidente, estava diretamente envolvido. No dia 23 de agosto, os militares publicaram um manifesto, exigindo a renúncia de Getúlio. No Palácio do Catete, os Generais reuniram-se para dar um ultimato ao Presidente, que aguardava o resultado da reunião em seus aposentos particulares.

Muitos brasileiros vararam a madrugada, postados à frente do rádio, aguardando as notícias sobre a reunião definitiva. Ouviram atentos quando o Repórter Esso anunciou que os militares exigiram a renúncia do Presidente, mesmo que ele tivesse proposto seu próprio afastamento para uma apuração isenta do episódio da rua Toneleiros. Benjamim Vargas, o Bejo, irmão do Presidente, foi quem lhe comunicou a decisão final da reunião. Getúlio Vargas escutou impassível suas palavras, comentou o seu fim mais uma vez, deu ordens a Bejo e recolheu-se à introspecção.

Seu segundo governo era bastante diferente do primeiro. Governando num regime democrático, tinha que atender a diferentes interesses e não conseguia atingir seu objetivo final em prol da nação. Assim, como um grande estadista, não podia aceitar ser derrotado mais uma vez. Tinha que tomar uma atitude. Não suportaria a humilhação de sair cabisbaixo do Palácio do Catete.

No início da manhã de 24 de agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas se suicida com um tiro no coração. Junto à cama, uma carta de despedida. A ideia de suicídio, levantada diversas vezes no diário do Presidente, concretizou-se. O país recebeu estarrecido a notícia de sua morte. A publicação da carta de Getúlio Vargas, culpando seus inimigos por seu ato dramático incitou a multidão. Os trabalhadores do Brasil não se calaram diante do silêncio de seu líder. Seu ato inverteu, numa questão de segundos, o rumo da História. A população que antes aplaudia Carlos Lacerda, enfurecida, ganhou as ruas dirigindo sua fúria contra as forças antigetulistas, empastelando os jornais de oposição, depredando prédios, atacando tropas. Em meio ao tumulto, o Vice-Presidente Café Filho assumiu o governo. Era a primeira vez que um norte-rio-grandense chegava à Presidência do Brasil.


Capítulo 51

A política nacional deu uma guinada. Antes da morte de Getúlio Vargas, era quase certa a vitória do candidato da UDN na disputa pela eleição presidencial em outubro de 1955. Os acontecimentos inverteram o quadro. A carta-testamento de Getúlio despertou na população os sentimentos nacionalistas e antiamericanos. A UDN passou a ser vista como vendedora da pátria. João Café Filho, Vice-Presidente pelo PSP, assumiu o governo, recebendo o apoio da UDN. As forças políticas deram início ao processo sucessório. O PSD lançou Juscelino Kubitschek como candidato à sucessão, tendo como Vice-Presidente o ex-Ministro de Vargas, João Goulart, filiado ao PTB. O PSP, seu candidato de sempre, Ademar de Barros; o PRP, Plínio Salgado; e a UDN, mesmo sem querer a realização das eleições, lançou o General Juarez Távora como seu candidato.

A disputa é bastante acirrada, mas o PSD consegue eleger a chapa Juscelino-Goulart. A UDN não se conforma com o resultado e tenta impedir a posse dos eleitos. Café Filho, dividido entre o dever de dar posse aos eleitos e o posicionamento da UDN, sofre um acidente cardiovascular que o afasta do poder. O presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, assume o governo e tenta armar o golpe; mas o General Lott, que tentava preservar a legalidade do pleito, consegue articular o Congresso e declarar o impedimento de Carlos Luz para o exercício do cargo. Nereu Ramos, presidente do Senado, assume a Presidência do país, para governar em Estado de Sítio até a posse de Juscelino. Ao mesmo tempo, já restabelecido, Café Filho tentar retornar às suas atribuições constitucionais, mas não consegue seu intento. Em 31 de janeiro de 1956, Juscelino Kubitschek toma posse, prometendo fazer o Brasil crescer 50 anos em 5.

No Rio Grande do Norte, a eleição de outubro de 1955 foi bem mais sossegada. Ao contrário do que se verificou em nível nacional, a UDN não teve dificuldades em eleger Governador do Estado, Dinarte Mariz, político proeminente, eleito Senador em 1954. Numa campanha tranquila, ele derrotou o candidato do PSD, Jocelyn Vilar de Melo.

José Bezerra, amigo íntimo do Governador eleito, não poupou esforços na campanha política. Apesar de sua transferência para Natal, conseguiu manter sua liderança política em Currais Novos e nos municípios vizinhos, como Florânia, Santana do Matos e São Vicente. Sempre que podia estava lá, conversando com o povo e sabendo dos seus problemas. Com a eleição de um seridoense para Governador, a região só teria a lucrar. O ouro branco continuava a ser exportado para o mundo, enquanto que os minérios eram fornecidos para a indústria pesada, colocando em destaque a posição econômica do Seridó; nada mais justo que ter um representante na administração estadual. Na formação do novo governo, que tomou posse em 31 de janeiro de 1956, as potencialidades da região foram levadas em consideração e graças ao seu conhecimento e à sua formação, José Bezerra foi convidado para assumir a Secretaria de Estado da Agricultura, Indústria, Comércio, Viação e Obras Públicas.

O convite foi prontamente aceito. Significava a entrada definitiva do currais-novense na política estadual, trabalhando na área ligada diretamente ao que mais gostava. As atividades agropastoris sempre ocuparam lugar de destaque em sua predileção. Aprendera desde muito cedo a amar a terra e tudo o que ela lhe fornecia. Os conhecimentos adquiridos na Escola Superior de Agronomia e Veterinária de Belo Horizonte, aliados à sua vasta experiência, seriam de grande valor para a agropecuária norte-rio-grandense.

Junto à família, o cargo a ser ocupado deixou todos muito envaidecidos. A transferência para Natal trouxera bons frutos. A entrada de José Bezerra na política estadual serviu para ratificar a decisão tomada no ano anterior. Desde que chegara à Capital, investira na compra de um terreno situado na avenida Hermes da Fonseca, mas vinha protelando o início da construção de sua residência definitiva. Yvete insistia, mas ele achava que era imobilizar capital, um duelo pacífico entre a cultura canavieira e a parcimônia seridoense. Por fim, resolveu iniciar a construção, em 1955. E agora, em 1956, ocupando um cargo importante na administração estadual, sua permanência em Natal estava solidificada.

Os primeiros meses à frente da pasta de governo foram de adaptação e conhecimento sobre a situação financeira do Estado, que não era muito boa. O Governador herdara um déficit orçamentário e o funcionalismo com o mês de dezembro em atraso. Mas, aos poucos, a administração organizava-se. José Bezerra ocupava um cargo importante, que envolvia os três setores da economia, muito embora a base econômica do Estado fosse agrário-exportadora. A cultura dos produtos da pauta de exportação, em meio à qual se destacavam o algodão, o açúcar e o agave, provocava o abandono da cultura dos produtos de subsistência, que tinham que ser importados para garantir o consumo da população.

O Rio Grande do Norte mantinha-se como estado agrícola, distante da industrialização que se processava no centro-sul. Nas terras potiguares, a indústria era representada, apenas, pelas usinas algodoeiras e por umas poucas usinas de açúcar que, paulatinamente, ocupavam o lugar dos antigos engenhos. Enquanto isso, no centro-sul, o governo de Juscelino Kubitschek, cumprindo sua meta de campanha, dava incentivos pesado para o desenvolvimento do setor industrial, acentuando a diferença entre o Norte e o Sul do Brasil.


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