No Rastro das Águas – Capítulos 70 e 71

(…)

O dia findava-se nas horas tristes do pôr-do-sol, quando o crepúsculo encobria a beleza infinita do mar, fazendo surgir a escuridão, aplacada pela beleza da lua sobressaindo às estrelas. José Bezerra não gostava daquela hora; sua alegria era estar em contato com a água, fosse na correnteza dos rios cheios dos invernos sertanejos ou nos deliciosos banhos nas sangrias, fosse ante a ilusão de dispor da imensidão do oceano. Para aquele que vivia no rastro das águas, a noite significava privar-se da visão infinita do mar; mas reconfortava-se, pois sua audição e seu olfato se tornavam mais apurados ao barulho das ondas e ao cheiro da maresia. Dormiria tranquilo, aguardando muitos outros verões.


Capítulo 70

Seu tronco estava bem fincado. Sua família crescera em meio às mudanças. Seus filhos, Haroldo, Franklin, Zorilda, Dulcinha, Eleika, Regina e José Bezerra Júnior, seguiram seus destinos. Vieram os netos, que somavam vinte e um: Tonico, Elza e Haroldinho, filhos de Haroldo e Selma; Júnior e Camila, filhos de Franklin e Verinha; Luizito, Maria Elena, Cláudio, Ricardo e Natália, filhos de Zorilda e Kmentt; Yvetinha, Marcelo, Eloísa e Fernanda, filhos de Eleika e Fernando; Kyvia, Sylvia e Regininha, filhas de Regina e Mota; Débora, José Neto, Adriana, Raquel e Luiza, filhos de José Bezerra Júnior e Silvana.

Novas gerações surgiam. José Bezerra já era bisavô. Cláudio casou-se com Marcela, pais de Valentino; Elza casou-se com Henrique, pais de Luiz Henrique e Cecília.

A ideia de morar num apartamento foi posta em prática. Em 1987, alugaram a casa e foram morar no edifício Odorico Ferreira, denominação em homenagem a seu amigo de longas datas, enquanto aguardavam a conclusão do edifício Petrópolis, de frente para o oceano Atlântico, onde José Bezerra poderia anoitecer e amanhecer respirando a brisa marinha.

Enquanto não efetuava a mudança, acompanhava o desenrolar dos acontecimentos no mundo. No Brasil, a situação econômica estava incontrolável, os preços subiam sem parar, o Presidente Sarney até que tentou, mas seus planos econômicos foram por água abaixo e o povo é quem mais sofria. José Bezerra estava receoso; não tomava mais conta das finanças, confiava em sua esposa, mas os índices da inflação alcançavam patamares altíssimos. Tinha horror à dívida e perguntava sempre se o dinheiro daria para a conclusão do prédio. Yvete acalmava-o, dizendo que o edifício já estava quase pronto.

Ao final de 1989, o Brasil voltou a respirar democracia plena, com a eleição para presidente, efetuada em dois turnos. Após o resultado do primeiro turno, permaneceram na disputa: Fernando Collor, pelo PRN, arregimentando as forças de direta e Lula, pelo PT, concentrando a esquerda brasileira. No mundo, o comunismo suspirava. Gorbatchev promovia as reformas políticas, que culminariam com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviética – URSS – e a independência dessas. A Rússia retomaria seu antigo nome, abrindo suas fronteiras para o capital estrangeiro. A Alemanha derrubava o muro de Berlim, pondo fim ao comunismo naquele país, com a unificação das duas repúblicas. Era a supremacia da direita sobre a esquerda.

José Bezerra acompanhava as mudanças, com as quais estava satisfeito, mas seu corpo dava sinais de fadiga. Seus amigos estavam partindo, mas Seu Cabral mantinha-se intacto aos efeitos do tempo. As conversas no terraço de sua casa, na rua Capitão Abdon Nunes, era uma diversão para seu espírito. A vivacidade de seu amigo era impressionante e a memória também. Diariamente, reviviam os grandes momentos da história e da política norte-rio-grandense.


Capítulo 71

Por oito anos de atraso, José Bezerra não nasceu ao explodir do século XX, mas nem por isso deixou de vivenciá-lo nos seus grandes momentos. Veio ao mundo no meio rural, quando a maior parte da população brasileira ainda lá habitava. Aprendeu, desde muito cedo, a sentir o gosto da terra, a amá-la e dela tirar seu sustento.

Se sua família lhe garantiu o patrimônio abençoado, faltou-lhe, assim como aos demais sertanejos, o líquido precioso. Deus achou melhor regatear, descansando a terra nas constantes estiagens, para fazer florescer, com os escassos e revigorantes invernos, frutos fortes e viçosos. Seu povo aprendeu a poupar, primeira lição de economia. À primeira, seguiram-se as demais. Criou-se sob os rigores da educação sertaneja.

Feito menino, perdeu o medo de trovão, brincou de fazer açude, tomou banho de bica, tangeu gado de osso, riscou em cavalo de pau; mais tarde, também de verdade, arriscando derrubadas de boi. Ante a severidade de sua mãe, encontrou o espírito brincalhão de Antônio Bezerra, mesclando-os em sua personalidade.

Depois de tomar gosto pelo Seridó, foi conhecer terras distantes. Incorporava o espírito de antigos desbravadores e alimentava uma vontade incessante de conhecer novos lugares. Foi assim desde pequeno, quando viu o mar pela primeira vez. Contrastando com a calmaria do sertão, encantou-se pelo balanço incansável das ondas.

Prosseguiu sua jornada, sendo educado em terras longínquas. Na volta para casa, matou as saudades dos costumes de lá. Fartou-se no verde da colheita e vibrou com as vaquejadas. Percorrendo caminhos distantes, fez grandes amizades. Sabia cultivá-las e gostava de uma boa conversa, costume herdado de seu pai. Por onde passava, parava para prosear, fosse com o mais humilde, fosse com o mais letrado. De vez em quando, aprontava umas brincadeiras pesadas e esperava a desforra.

Muito cedo teve que assumir responsabilidades. Tornou-se homem sério. Aprendeu bem as lições de economia, tinha fama de pão-duro, mas foi justamente essa qualidade que lhe permitiu organizar as finanças de seu pai e o fez tomar gosto pelo dinheiro. Sempre com muita parcimônia, construiu seu patrimônio com base nos produtos econômicos de sua região, mas soube resumir suas atividades na hora certa.

Com seu porte elegante e sua voz mansa, conquistou o coração de Yvete, moça da Zona da Mata, criada com costumes diferentes do Seridó. Era o encanto pelo litoral ressurgindo. Apaixonou-se e casou-se. A união ajudou-o a amenizar o seu lado conservador. Vieram os filhos e a transferência para a Capital, em busca de garantir boa educação para eles. Partiu de Currais Novos, com uma saudade imensa no coração. Mas não a transpareceu, como era de seu costume guardou bem no fundo suas emoções.

Graças à educação recebida, tinha discernimento para qualquer assunto. Gostava sempre de exprimir sua opinião, mesmo que não fosse convidado a falar. Talvez por isso tenha se metido em política. Mas depois a abandonou, mantendo-se a par dos acontecimentos nos bastidores. Sem fazer alarde, muitas vezes se metia no que não era de sua competência; mas, com a experiência adquirida ao longo do caminho, achava-se no direito de aconselhar.

A velhice chegou, mas não inibiu sua vontade de conhecer o mundo. Ainda teve gás para dar a volta ao seu redor. Acompanhou a evolução dos transportes: tinha viajado a cavalo, de trem, de navio e de avião, mas escolheu este último para a nova façanha, enquanto o homem não popularizava o foguete, que já tinha ido à Lua.

Aquele currais-novense gostava de se pôr à frente dos acontecimentos, mas mantinha seu lado conservador. Era uma batalha interna protagonizada por lados contrários, que lhe exigia uma posição conciliadora, sempre presente em suas ações. Neste contexto, assimilou novos costumes e rebateu outros tantos, pois as transformações estavam indo rápido demais. Seu espírito não reagia como antes; retornava ao compasso lento da caatinga em dias de sol escaldante, onde matava suas saudades. As revoluções sociais iam de encontro aos valores tradicionais do sertão.

Naquela idade, preferiu recordar os bons tempos, as presepadas aprontadas, as amizades conquistadas. Cansado, recolheu-se à quietude do sertão, achando-se inatingível, mas as mudanças também chegaram por lá. Sua caminhada foi longa e cansativa, apelava por um merecido descanso. Travava uma luta interna contra os males do corpo.

Impaciente, revigorou-se na estação das chuvas no Seridó e seguiu o rastro das águas, indo dar no litoral, nas redes de Muriú. Aguardava a finalização do novo apartamento, de frente para o mar, onde poderia descansar de sua busca constante.

Depois do veraneio, acomodou-se em definitivo. De seu novo quarto, pôde apreciar o nascer do sol na linha do horizonte marinho e o ocaso no Potengi. Estava satisfeito com a nova morada. Os cuidados intensificaram-se. Ficou rodeado de gente. Ao seu lado, Yvete, sua inseparável e cuidadosa esposa. Na cozinha, Maria, considerada da família, caprichando em fazer seus gostos. O mar foi serenando; como a calmaria após a tormenta, refletiu um grande espelho d’água. A brisa parou de soprar, as ondas acalmaram-se, atendendo ao apelo de um pacificador. O entardecer chegou mais cedo. O neto do Coronel deu seu último suspiro. Era uma sexta-feira, 30 de março de 1990, dez anos antes do início do século XXI.

Seu corpo voltou ao solo seridoense, onde descansou fincando raízes. Dessa vez não foi ele quem correu ao encontro das águas. Embora atrasadas, elas desabaram ligeiras e em quantidade, acolhendo ao derradeiro apelo de um sertanejo sedento. Encharcaram a terra ressequida, preparando-a para receber um filho saudoso.

FIM

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2 comments

  1. Elzinha, você me fez recordar tantas histórias contada por papai. Uma vez conversando com Helena, falei que Raimundo Cirne definia papai como um contador de histórias e ela concordou.
    A casa da Hermès da Fonseca eu conheci através de Eleika e Fernando que foram padrinhos de Josué no nosso casamento.

    1. Oi Fatita, esse livro traz muitas recordações de um sertanejo, em meio aos acontecimentos históricos, políticos, sociais…
      A casa da Hermes era um marco para todos, morro de pena de ter sido demolida. Beijos

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