Sons de todo dia

Instalação no Museu Calouste Gulbenkian


Ouvia o espanar das asas do galo, seguido do canto que amiudava à medida que a madrugada mudava de cor. Mais ao longe, um cachorro latia, avisando o movimento de gente. O chocalho dos ruminantes tilintava o silêncio do Sertão noturno. Logo os bezerros anunciavam a ordenha e a passarinhada saudava o nascer do novo dia.

Era assim que despertava o habitante daquele chão, encravado no sertão de antigamente. O apito do trem e as buzinas dos automóveis trouxeram o progresso e levaram essa gente para os aglomerados urbanos.

O som da natureza cedeu lugar ao barulho das cidades. Carros, motos, ônibus e caminhões circulando em excesso. Serra, britadeiras e máquinas edificando sem parar. Melhor quando a noite se cala e apenas poucos carros transitam nas ruas desertas. Sussurro, silêncio e sossego, entrecortados por apitos de vigilantes atentos.

Lembro dos sons que fizeram parte da minha infância. O chiado estancava quando a rádio era sintonizada, às dezenove horas, tendo ao fundo “O Guarani” de Carlos Gomes, o locutor anunciava, em Brasília, a Voz do Brasil. Com a chegada da televisão, todos corriam para frente da tela se ouvissem o chamado do plantão da Globo, algo de muito importante acontecera – coisa de pouca utilidade em tempos de instantaneidade da internet. Nas poucas vezes que se ia ao aeroporto, a voz de Iris Lettieri era inconfundível anunciando chegadas e partidas. Na adolescência, eu e toda nação brasileira aguardávamos os domingos de Fórmula Um, ansiosos pelo Tema da Vitória espocando mais um pódio de Ayrton Senna.

Na rua, apesar de hoje ainda ter o picolé de Caicó fazendo barulho, era o homem do camarão que em dias de sábado passava gritando: “camarão torrado…”; o carrinho do sorvete Big Milk tocava uma sineta para a alegria da criançada; nas portas do cinema, os vendedores ambulantes anunciavam chiclete, drops e pastilha Garoto; o tengo-lengo-tengo do Cavaco Chinês até hoje resiste à modernidade. E assim assimilamos os sons de todo dia.

Os antigos despertadores, que chegavam a balançar com o tilintar estridente, perderam a vez para os celulares. Estes sim, apresentam toques variados e permitem escolher o volume e a vibração, coisas da vida moderna. E quantos toques no dia a dia! Relógio, SMS, WhatsApp, notificações de Instagram, e-mails, voicemails, alertas do calendário, dos lembretes. Mas pelo menos podemos escolher o que mais nos agrada ou mesmo silenciá-los.

Se o aparelho não oferece um toque agradável, as músicas podem assumir esta finalidade. Nesse campo, viva a tecnologia! Nos diversos aplicativos, podemos encontrar sons e músicas de ontem e de hoje, trazê-los até nossos ouvidos, alimentarmos a audição.


Carlos Drummond de Andrade

Som

Nem soneto nem sonata
Vou curtir um som
Dissonante dos sonidos
Som
Ressonante de sibildos
Som
Sonotinto de sonalgas
Nem sonoro nem sonouro
Vou curtir um som
Mui sonso, mui insolúvel
Som não sonoterápico
Bem insondável, som
De raspante derrapante
Rouco reco ronco rato
Som superenrolado
Com se sona hoje-em-noite
Vou curtir, vou curtir um som
Ausente de qualquer música
E rico de curtição.

Tema da Vitória de Eduardo Souto Neto, interpretado pelo grupo Roupa Nova sob a regência do próprio autor da música.

Acesse também: Aconchego e Piquenique.

Leia também

2 comments

  1. Somos de uma geração onde existiu a calmaria dos sons em nossa infância e ainda temos a chance de aceitar as tecnologias impostas.

    1. Sorte nossa, poder conhecer as duas faces da moeda. Essa nova geração não encontrou alguns dos sons de nossa infância.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *