Dinheiro enterrado, o mesmo que botija para o sertão do Nordeste, ouro em moeda, barras de ouro ou de prata, deixados pelo holandês ou escondidos pelos ricos, no milenar e universal costume de evitar o furto ou o ladrão de casa de quem ninguém se livra. Os tesouros dados pelas almas do outro mundo dependem de condições, missas, orações, satisfação de dívidas e obediência a um certo número de regras indispensáveis (…) O tesouro é encontrado unicamente por quem o recebeu em sonho (…) Se faltar alguma disposição, erro no processo de extrativo, o tesouro transformar-se-á em carvão. Todos os sinais desaparecerão, se o silêncio for interrompido, mesmo que por um grito inopinado ou por uma oração. A primeira moeda encontrada é a que deve ficar no lugar do tesouro (CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro).
Nem meia noite, nem sexta-feira. Sem precisar obedecer às regras do folclore – mesmo que muita gente ainda acredite firmemente na possibilidade de enriquecer desenterrando uma botija – fui descobrindo alguns tesouros enterrados em minha casa.
Sempre gostei de guardar papel e agora que os aparelhos digitais dominam tudo, os papeis em desuso tornam-se uma grande riqueza. Outro dia, uma conta do Instagram falava sobre o prazer de receber cartas em casa e colocava em prática esse antigo costume – uma forma vintage de marketing.
Em silêncio, começo a vasculhar caixas, pastas, envelopes… e vou descobrindo cartões, cartas, bilhetes, convites, telegramas, tudo em papel, desgastados pelo tempo, mas capazes de cumprir, até hoje, a sua missão.
Logo de cara, me deparo com um cartão postal de 1970 (a fotografia da Faculdade de Direito de Pouso Alegre, Minas Gerais); enviado por vovô Chiquinho, para Tonico e Elzinha. Escrito de próprio punho, com muitas recordações e saudades. Beijos eternos, uma relíquia com sentido de permanência!
Abro um envelope e encontro uma pintura que fiz quando frequentei a Escolinha de Arte Newton Navarro em 1971. O “quadro” percorreu o mundo em exposições infantis. Nunca recebi o original de volta, me restou uma cópia em preto e branco de “A maçã” – carinhosamente guardada.
Os cartões com as primeiras palavras escritas pelos filhos em dia de pai ou de mãe; rabiscos inseguros de dedicatórias que transmitem puro amor. Relatórios dos filhos no jardim da infância (quem guarda isso?). Guarde, você vai gostar de reler a avaliação de todas as etapas do aprendizado.
Encontro uma releitura do “Vaso de Crisântemos”, de Renoir, pelos pinceis de minha filha, quando cursava o 3º ano do ensino fundamental. Que bom ver a arte sendo ensinada bem cedo!
As crianças cresceram e os cartões foram perdendo espaço. Só em datas muitos especiais eles ressurgiam. Postais enviados dos lugares visitados, mapas, guias, roteiros e diários de viagem com o marido estão muito bem guardados.
Tenho arquivados todos os telegramas e cartões que recebi no lançamento do livro “No Rastro das Águas”, além das reportagens em jornais e periódicos; o álbum de fotografias e o convite para o lançamento e exposição fotográfica do meu livro “Sertão, Seridó, Sentidos” registram esse momento ímpar. Provas de que plantei árvores, escrevi livros e tive filhos maravilhosos.
Os convites de formaturas (meu e dos filhos) e do casamento do filho – vida que segue no voo do primogênito e da nora acolhida como filha. Festas de familiares e amigos, além de despedidas em papeis preciosos.
No mundo das artes, os catálogos de exposições da mãe artista plástica. Material de exposições e mostras que frequentei ou de artistas que me enviaram portfólios através de cartões ou miniaturas de seus trabalhos. Quanta criatividade!
Vou revirando papeis, sentindo a textura, o toque, o cheiro, o manuseio. Afinal, tenho mais que a ponta do dedo para tocar uma tela, prefiro utilizar a mão inteira e meus dez dedos para pegar um livro, passar a página, folhear, atiçar os sentidos.
Não precisei escavar o chão, minha estrada está guardada em várias botijas, uma sequência de vida. A riqueza da minha história e dos meus sonhos tem um valor que só eu mesma sou capaz de mensurar. Sigo em frente me reinventando e continuo a colacionar uma rica botija de papeis em desuso.
E você, consegue desenterrar botijas para encontrar os seus tesouros?
Clique aqui para ler: Caixas e álbuns de fotografias, Vidas em caixas, Celebrando a vida e Porteiras do tempo.
4 comments
Perfeito, Elzinha. Otima leitura e como vc, vou descobrir em breve outras das minhas botijas…kkk..algumas já estão expostas nas paredes da casa, em especial as escritas dos filhos qdo pequenos.
Oi Yvetinha, começamos a abrir gavetas, pastas, caixas… e nossas maiores riquezas surgem nos trazendo boas lembranças. Cada uma com valor subjetivo imensurável. Que vcs desenterre várias botijas.😘💐❤️
Delicia de leitura! Também guardo os escritos dos meus antepassados…. as cartas que papai escrevia pra mamae, com aquela letra linda e com um vocábulo perfeito! As memórias voltam com força e saudades de um tempo bom!
É muito bom remexer nesses objetos que nos remetem a um tempo bom do passado. As memórias realmente voltam com força. Beijos.