Velha roupa descolorida

Em tempo de pandemia e isolamento, ela vem reinando exclusiva. Acostumada a ser usada apenas durante algumas horas do dia, agora é quase uma segunda pele.

Chegou com cheiro de nova; bem passada, foi exposta vaidosamente. Depois foi virando comum, guardada e retirada esporadicamente do guarda-roupa. Demarcou seu espaço e passou a ser usada com mais frequência. Com fibras maleáveis, foi adaptando-se ao contorno do corpo e não o deixa em aperto.

É suficiente sábia para trazer conforto e aconchego. Em tempo de quarentena, está sendo muito mais demandada. Como a frequência exige, uma só não é suficiente. Ganhou companheiras, que são lavadas com mais frequência. Resultado: estão mais surradas e confortáveis. Vejo a hora se desmancharem, não sei quanto tempo resistirão.

Para quem está em teletrabalho, melhor ter cuidado e não a deixar exposta; pode passar aperto. Li vários depoimentos de pessoas que fazem videoconferência, trajando a parte de cima da vestimenta de trabalho e mantém a hegemonia da inseparável peça na parte de baixo.

Outro dia, inaugurando sua participação em sessão virtual, uma autoridade pública apareceu sem camisa, pensando que sua imagem não estaria em exibição. Correu da câmera para sair do apuro, mas o episódio já estava registrado e espalhado no mundo virtual.

Para quebrar o depressivo isolamento ou atender ao reclame das enciumadas, às vezes, é deixada de lado, trocada por uma roupa de trabalho ou da noite; tudo vale para levantar o astral. Ela tem um ligeiro descanso, mas permanece à disposição.

Não sei como será seu fim. Temo que, de tanto ser usada, termine esgarçando-se, seguindo direto para o lixo. Pode até ser excluída por excesso de exposição ou contaminação, mas cumpriu fielmente o seu papel.

Se ainda der para o gasto, poderá mudar de dono e levar seu conforto para outra praça. Ou, quem sabe, reconheçam seus préstimos e lhe emoldurem como troféu. Ganhará espaço para a eternidade.

Seu final, você escolhe. Quero apenas que lembre da velha roupa descolorida, fiel companheira do lar, que tanto conforto nos proporciona. De toda forma, é bom dar uma reciclada depois do isolamento, levar para longe as lembranças de um tempo estacionado, mas cuidado para ela não sair correndo atrás de você.


Fernando Teixeira de Andrade

O medo: o maior gigante da alma

Para quem tem medo, e a nada se atreve, tudo é ousado e perigoso. É o medo que esteriliza nossos abraços e cancela nossos afetos; que proíbe nossos beijos e nos coloca sempre do lado de cá do muro. Esse medo que se enraíza no coração do homem impede-o de ver o mundo que se descortina para além do muro, como se o novo fosse sempre uma cilada, e o desconhecido tivesse sempre uma armadilha a ameaçar nossa ilusão de segurança e certeza.

O medo, já dizia Mira Y Lopes, é o grande gigante da alma, é a mais forte e mais atávica das nossas emoções. Somos educados para o medo, para o não-ousar e, no entanto, os grandes saltos que demos, no tempo e no espaço, na ciência e na arte, na vida e no amor, foram transgressões, e somente a coragem lúdica pode trazer o novo, e a paisagem vasta que se descortina além dos muros que erguemos dentro e fora de nós mesmos.

E se Cristo não tivesse ousado saber-se o Messias Prometido? E se Galileu Galilei tivesse se acovardado, diante das evidências que hoje aceitamos naturalmente? E se Freud tivesse se acovardado diante das profundezas do inconsciente? E se Picasso não tivesse se atrevido a distorcer as formas e a olhar como quem tivesse mil olhos? “A mente apavora o que não é mesmo velho”, canta o poeta, expressando o choque do novo, o estranhamento do desconhecido.

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Jason Mraz – 93 Million Miles (Official Video)

Elis Regina- Velha Roupa Colorida

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