Discurso sobre educação em 1883 – Atual e relevante

O Popular Instituto Literário do Ceará-Mirim foi uma sociedade fundada em 1883 no município de Ceará Mirim/RN, antes mesmo da Lei Áurea, para oferecer escola noturna e biblioteca a alunos carentes.

Os discursos proferidos pelo Orador e pelo Presidente do Instituto, por ocasião da Sessão Solene de instalação da Primeira Escola Noturna e da Biblioteca, foram publicados pela Tipografia da Fábrica Apollo, em 1883, na cidade de Recife/PE.

Em 2023, este material me foi apresentado por André Felipe Pignataro Furtado, confrade do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Por sua relevância e atualidade – mesmo depois de transcorridos 140 anos – vale publicar o discurso de Francisco de Sales Meira e Sá, republicano e abolicionista, meu trisavô pelo lado materno.

Discurso de Meira e Sá:

O POPULAR INSTITUTO LITERÁRIO DO CEARÁ-MIRIM é uma Sociedade de propaganda e de caridade, convém dizer antes de qualquer outra coisa.

De propaganda – porque tende a fazer ver ao pobre que a instrução é o primeiro bem e o mais nobre fim do homem aqui na terra, pois que o coloca em condições de melhor servir a si mesmo, a Deus e à Pátria; é a luz que, esclarecendo a inteligência, mostra-lhe os abismos do mal, as vielas e os esconderijos do vício e da miséria, apenas suspeitados na penumbra da ignorância, e às vezes até com a sedutora aparência de risonhos gozos fantasiados pelo prisma das paixões, porém, quais verdes e floridas heras, escondendo pérfidas, medonhas armadilhas.

De caridade – porque procura proporcionar ao analfabeto e a um punhado de filhos do povo os meios de instrução, dando-lhes escolas, onde possam aprender esses primeiros rudimentos que são a base fundamental, a mais importante condição dos aperfeiçoamentos que podem ser operados nos indivíduos e pelos indivíduos na sociedade toda.

– A um punhado de filhos do povo – dissemos; porque a mais não podem chegar os esforços do Popular Instituto Literário, ainda na sua primeira fase de elaboração e por entre não poucas dificuldades.

Mas, mesmo assim, não é pequeno serviço prestado a estas pobres crianças, dotadas hoje à indiferença da sociedade, que, no entanto, mais tarde arrogar-se-á o direito de tomar-lhe conta – trancando-as nos cárceres públicos e apagando-lhes na alma a luz, já frouxa talvez, da dignidade humana!…

Não será isto uma verdade, embora amarga e deplorável?!

Parece que já é tempo de tratar-se seriamente da educação do povo; do povo com quem lidamos dia e noite; do povo que constitui a grande massa da Nação; do povo que será o primeiro elemento de ordem ou de desordem, conforme o seu estado de adiantamento ou de atraso intelectual e moral; do povo que é o mais valente braço da pátria nos campos de batalha e a sua mais segura esperança nos trances de cruciante dor…

Mas, como alcançar este melhoramento e regeneração social, senão por meio da instrução?

Está-se constantemente, entre nós, a gritar e a pedir reformas sobre um milhão de coisas; e a verdade é que as que se fazem, ou dão resultados negativos (algumas até existem, cuja inexequibilidade prática tem sido por todos proclamada), ou ficam muito aquém do que era de esperar.

E por que? Será que todas as nossa leis sejam más?

Não, é porque não tratamos da primeira das reformas: a reforma dos costumes; os quais, não há negá-lo, vão em bem sensível decadência.

Não há leis boas, quando a sociedade sente-se moralmente desmantelada, e frouxa – não ouve dentro de si a voz que lhe dita a lei moral, ou percebe-a indiferentemente, o que vem dar no mesmo.

É, por outro lado, muito frequente ouvir-se: – O trabalho está desorganizado; não temos braços; o nosso povo é refratário à lei do método e da constância no serviço regular; é preguiçoso, é viciado, etc, etc.

Mas, com não há de ser assim? Onde há escolas suficientes e aptas para educá-lo? Onde já ouviu ele os sãos princípios da moral e da religião, que despertam, elevam e purificam os sentimentos, que inspiram a coragem nos perigos, a resignação nos infortúnios, ensinam e consolidam o amor e obediência à ordem, o respeito à lei e às autoridades, o afeto e a dedicação ao trabalho, a aversão ao ócio e tantas outras virtudes, que formam ou constituem a verdadeira grandeza, a primordial felicidade dos povos livres?

Se, portanto, vive o povo mergulhado na ignorância, não é de esperar senão aquilo mesmo, pois, para nos servir do dito espirituoso de um estadista nosso, de cobra não nasce passarinho.

A ignorância é realmente o ninho de todos os vícios, a origem de todos os males.

Um povo profundamente ignorante pode, sim, em um momento dado, tornar-se um fanático capaz do sacrifício da própria vida, tanto nas mãos de um ministro de Cristo, como de um sectário de Buda; pode igualmente tornar-se um tigre sanhudo e valente nas mãos de um demagogo hábil, ou de um ditador como Lopes; mas, com certeza, jamais poderá ser um verdadeiro crente ou um verdadeiro herói.

É inútil declamar contra o povo, que, afinal de contas, não é o culpado; instruamo-lo. E para isto não esperemos pelo Deus Governo: procuremos nós mesmos fazê-lo.

Um dos nossos maiores defeitos é a mania pela política, essa fonte de verbiagem; esse imenso facho, para o qual atraídos tantos talentos, se vão digladiar nas esterilizadoras lutas chamadas políticas; esse fator de males sem conta, e não compensados talvez pelos poucos e pecos benefícios acidentalmente produzidos.

Vemos aí um grande derivatório das forças, das luzes e até do sentimento moral do país, e por esta razão o consignamos aqui.

Nas províncias é ela – a política – a terrível inimiga da instrução pública, desvirtuando-a e fazendo-a descer, não raro, ao mais baixo nível da abjecção…

Não se pode, sem deturpar a instrução, conservá-la sujeita aos caprichos e às conveniências, por via de regra, injustos dos partidos dominantes.

Tão arraigado está porém o mal, que só vemos um meio eficaz de reagir contra ele: é pôr em ação a iniciativa particular em prol da instrução.


Há uma ideia que tem feito no seio do país admirável evolução, e, já hoje, se impondo com a força irresistível do direito agindo e nome da natureza, vai causando a uns temor, ao passo que a outros se afigura – Eldorado – para o avigoramento da Nação, a cornucópia de todos os benefícios para a Pátria: – É a emancipação total e quanto antes dos escravos.

Grande e generosa ideia! sem dúvida.

Mas não há grande mérito em libertar o homem do jugo de outro homem, deixando-o continuar escravo de um cem número de vícios, de uma ignorância, em uma palavra, boçal; tanto mais perigosos, quando é certo que terão de projetar-se em cheio na grande massa da população, que já por si demanda sérios cuidados.

Arrancar o pobre escravo da senzala para deixá-lo cair nas prisões públicas; pô-lo fora do alcance do azorrague e do tronco para vê-lo arremessar-se direto à calceta e à corrente do galé… não é um verdadeiro benefício que se lhe faça, nem a ele, nem à sociedade.

Libertemos, sim, e a liberdade está para honra do país no coração de todos os brasileiros; mas eduquemos também os libertos.

É tempo, já agora que não é lícito duvidar do rumo que leva o patriótico e generoso impulso abolicionista, é tempo, repetimos, de abrir e proporcionar aos libertos escolas, onde eles e os seus filhos possam aprender o meio de fazer uso proveitoso da liberdade que alcançaram.

Assim, todas as dificuldades, todos os inconvenientes desaparecerão afinal; de outro modo: aí d’eles! aí de nós todos!!…

Não concluiremos este preâmbulo, sem fazer um apelo à imprensa do país e a todos os nossos homens de letras em favor da Biblioteca, ora nascente nesta cidade: pedimo-lhes o valioso auxilio.

O quadro que juntamos, como apêndice, a este folheto, mostra que ela está enfim fundada com os poucos recursos de que se podia dispor em um lugar afastado dos grandes centros literários, e que, mesmo assim em miniatura, vai-se constituindo já um núcleo de leitura instrutiva e agradável – com o único prejuízo dos pequenos ajuntamentos noturnos às portas das lojas e outros estabelecimentos de igual natureza, onde pouco se pensa e muito se fala…

Afinal, nas bibliotecas, não lucra somente quem lê, lucram também os escritores, cujas obras são lidas, e é certo que todo escritor de fé deseja comunicar suas ideias a um maior numero possível de pessoas.

Cidade do Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte, 28 de Setembro de 1883.

Meira e Sá.



Obs.: A ortografia foi adequada às normas de 2023.

Leia também

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *