Gargalheira ou Gargalheiras?

“O rio, estancado em açude, continua depois, em verde sinuoso de capinzais, copas de mangueiras, leques de coqueiros ou canaviais penteados pelo vento. Milhões de metros cúbicos de água-doce, fria e cheirosa – é que a água nos desertos também cheira – esbarrados pela muralha da parede, aninham peixes, criam vazantes, dão de beber à criação, fazem crescer raízes, caules, folhas, flores e frutos e se esclerosam em veias pela terra adentro, esverdeando em folhas os sedentos chãos cinzentos daqueles sertões.” – Oswaldo Lamartine

A pesquisa histórica revela coincidências valorosas. Estou a assuntar a construção do Açude Gargalheira, quando me deparo com o artigo do jornal O POTI, de 05 de julho de 1957: “Roteiro Sentimental do Gargalheira”, escrito por Zila Mamede.

A poeta paraibana de Nova Palmeira, transplantada e enraizada no Rio Grande do Norte, integrou uma comitiva rotariana que, a convite do Comandante do Batalhão de Serviços de Engenharia, deslocou-se de Natal a Acari, para ver a grande obra de engenharia concretizando-se. Seu relato carrega o sertão e a poesia dentro de si:

Campo de Bulhões. E Gargalheira surgindo. As máquinas funcionando. O Concreto descendo. As placas e colunas. O gigante de cimento armado nascendo. Gargalheira se tornando realidade. Pedras redondas brilhando ao sol. Pedras que ficarão engolidas dentro em breve. As águas do Gargalheira lavando tudo. Embocando tudo. Estradas e pedras. Vazantes. Serras. O Rio lá embaixo ignorando seu próximo destino de mar. Rio besta. Nem sabe que será dono de tudo.”

Açude Marechal Dutra (Gargalheira) | Acari/RN

Rio adormecido de cada infância banhada no Acauã, afluente do Seridó. Rio seco ou de enchente, intempestivo, correndo em direção ao boqueirão das serras do Abreu, da Carnaubinha, Olho d’Água e Gargalheira, onde o barramento de concreto lhe deu novas feições, ainda mais belas.

Águas acumuladas no açude tornaram-se donas de tudo ao redor. Força de ser rio e ser caminho no enfrentamento da estiagem constante. Oásis para os sedentos – povo e chão.

Dos primeiros estudos em 1909 até meados dos anos 50, diversas empreitadas interrompidas. Somente em outubro de 1956, quando o 1º Batalhão de Engenharia do Exército assumiu a obra, foi possível a conclusão definitiva do Gargalheira.

Para evitar a inundação das minas de scheelita, o projeto inicial com capacidade para 200 milhões de metros cúbicos foi reduzido para 44 milhões. Inaugurado oficialmente em 27 de abril de 1959 com o nome de Açude Marechal Dutra, sua primeira sangria ocorreu em 1960, vertendo as águas sobre o sangradouro de 298m.

O nome oficial está registrado nos documentos públicos, mas na oralidade sua gente migrou da singularidade de Gargalheira para o ser plural. Se o nome deriva da gargalheira dos escravos ou do gargalo dos boqueirões, não sei precisar.

Para Zila Mamede, Gargalheira dá sempre a ideia de alegria, gargalhada. Gargalheira ou Gargalheiras, não importa. No singular ou no plural, sua beleza ímpar é poesia para o olhar, rio represado, por vezes intermitente, terra alagada, vertedouro esperança, sertão a caminho do oceano infinito.

Natureza embelezada pela engenharia. O bicho-homem reinventando o seu viver. Mato seco, cordilheiras de pedras, estrondar de trovão, Acauã de barreira a barreira, ruído de águas açodadas, marolas de cores mutantes, esbarro no concreto. Sangria espetáculo. Água cheirosa do Seridó.

* Texto escrito a convite da Presidente do IHGRN, Joventina Simões, para série “Monumentos do Rio Grande do Norte”.


Sangria do Açude Gargalheira em 2008 | Acari/RN

Poesia

O Rio – Zila Mamede

Um rio adormecido em cada infância,
Rio seco ou de enchente, intempestivo
Rio que não cresceu – riacho riba.

Mas o que conta em nós é mesmo o rio
Correndo na memória com seu jeito
De rio, sua boca chã de rio,

A força de ser rio e ser caminho
De rio, noite assombração de rio,
Chamado ser em oculto chão de rio,

Ter os remosos fluviais de rio
Que afogou nas areias dois meninos
E de seu pranto fez nascer cacimbas.

Acesse também: Tome assento, Memória afetiva e um toque cultural, Mate a cobra e mostre o pau.

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4 comments

  1. Uma beleza de Texto, não somente pelo conteúdo, mas pela articulação com os outros textos utilizados. Parabéns pelo presente.

    1. Eu que agradeço a poesia de Zila, os textos de Oswaldo e o sertão de todos nós. Abraço!

  2. Parabéns Elza, só você para transformar uma matéria (antiga) de jornal em poesia. Sempre valorizando a cultura do Estado.

    1. Obrigada amiga! E seu sogro fez parte da comitiva que visitou o Gargalheira.😘

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