No Rastro das Águas – Capítulo 4

(…)

Aos cafus, uma rodada de coalhada, adoçada com raspas de rapadura, encerrava o dia. O silêncio da escuridão era quebrado, ora pelo chocalho do gado, ora pelo pio da coruja. Era um momento revelador de quanto o homem rural estava interligado à natureza e de quanto o progresso iria distanciá-lo de suas origens.


À medida que o mês de dezembro se desenrolava, mais ansiosos ficavam os seridoenses. Os sentidos eram aguçados à procura dos mínimos sinais exalados pela fauna, flora, ventos ou astros. Em dias de feira, quando os fazendeiros se encontravam na cidade, qualquer viajante era logo indagado, principalmente quando vinha do Norte, das bandas do Piauí. As conversas nos alpendres das fazendas e tudo o mais convergiam para um só ponto: qualquer sinal que pudesse precisar a chegada da chuva.

O cheiro emanado do chão não deixa dúvida. Como um animal que fareja sua presa de longe, porque dela depende sua sobrevivência, Antônio levanta-se e espia pela janela. Seu olfato não o enganara. Na escuridão da noite, pode perceber a chuva que, apesar de fina, aos poucos foi aumentando. Mal deu para correr goteira, mas a batida na telha acordou o pequeno José, estranhando o barulho que até então desconhecia. Sua mãe procurou acalmá-lo, agradecendo a Deus pelo acontecido. Aquele era um bom sinal, uma graça no mês do nascimento do menino Jesus.

Assentado numa região semiárida, desbravada com a ajuda do gado, muito cedo o seridoense percebe que a falta d’água faz desta última seu bem mais precioso. Seu solo é desgastado pela erosão, ressecado pelas constantes estiagens; sua vegetação é escassa, porque necessita expandir suas raízes à procura da água; suas chuvas, quando regulares, caem durante quatro meses, para oito meses enxutos; os serrotes de pedras disputam cada palmo de terra, embrutecendo a região. Neste ambiente, a chegada da chuva vem amenizar a paisagem cinzenta que encobre o sertão.

O dia amanheceu diferente; a chuva da noite passada espalhou esperança no ar. A passarada fez um alvorecer radiante, aproveitando as derradeiras gotículas que escorriam dos galhos desnudos da vegetação. Os bichos têm uma sensibilidade mais apurada em relação às mudanças da natureza e tratam logo de demonstrá-la, escramuçando na terra batida. Do convívio estreito com esses fenômenos, o homem seridoense tirou suas lições, deixando transparecer, igualmente, sua satisfação.

Com uma disposição que há meses não sentia, Antônio mandou selar seu cavalo e saiu em direção à cidade. Em cada fazenda que passava, inquiria, procurando seguir o rumo da chuva e sua intensidade. Chegando a Currais Novos, tomou conhecimento de que por onde passara a chuva mal tinha dado para apagar a poeira. Mas, confiante em seus instintos, retornou otimista para casa, disposto a preparar os algodoeiros para a estação chuvosa.

Com o advento da Revolução Industrial, o Nordeste brasileiro, especialmente o Estado do Maranhão, incrementou a produção de algodão, antes destinada apenas às necessidades básicas, visando a atender à demanda das tecelagens inglesas. Entretanto, foi somente em consequência da Guerra de Secessão Americana (1861/65), com a redução da oferta mundial, que a produção do algodão nordestino se expandiu, motivada pela elevação do preço do produto, começando a disputar terreno com a atividade pastoril.

Com o final da guerra americana, o mercado mundial normalizou-se e parte da produção nordestina, pela baixa qualidade de seu produto, apresentou níveis decrescentes de aceitação. Porém, devido à demanda da emergente indústria têxtil da região Sudeste do Brasil, que começava a crescer financiada pelo capital acumulado pela cafeicultura, no final do século XIX e início do século XX, a produção nordestina encontrou o seu mercado.

No Seridó, a situação era um pouco diferente. Nessa região, estava localizada a cultura do algodão mocó, do tipo arbóreo, de fibra longa e excelente qualidade, especialmente destinado à fabricação de tecidos finos. Trata-se de um tipo de algodão produzido em pouquíssimas partes do mundo, tendo garantida sua aceitação, tanto no mercado interno, como no externo.

Com a chegada da República, em 1889, o Estado passou a ter que arrecadar suas próprias receitas, para financiamento de suas despesas. Nesse novo contexto e como forma de demonstrar a ascensão da cotonicultura, as receitas públicas estaduais no início do século XX, decorrentes da exportação do algodão, já disputavam, equilibradamente, com as da cana-de-açúcar, que apresentavam uma tendência de queda no preço do produto. A partir de 1904, o algodão firmou-se como uma das principais culturas da economia norte-rio-grandense, só perdendo terreno quando assolada pelas secas, pragas ou invernos rigorosos.

Antônio Bezerra percebera esta realidade. Na expectativa de recuperar as perdas provenientes dos dois anos consecutivos de seca, já planejava a poda e limpa dos campos. Retiraria o gado dos algodoeiros e sustentá-lo-ia, até chover, com o cardeiro, vegetação resistente à seca que era encontrada com frequência na caatinga; bastava apenas cortá-lo e queimá-lo, para que os espinhos não machucassem as reses. Chegando à fazenda, apeou ligeiro do cavalo e foi tratar com Tano.


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