No Rastro das Águas – Capítulo 9

(…)

Observando a roupa quarar, pensou: maio estava chegando; era mês de novena à Virgem Maria e com pouco estariam no mês de Santana. Já era tempo de se preparar para a festa; José crescia rapidamente e de repente sua roupa ficava perdida. Da próxima vez que Antônio fosse à rua, encomendaria novos tecidos para confeccionar, ela mesma, os trajes da festa da padroeira.


Ritinha preparara o bisaco de seu marido. Mandara pisar a carne que, misturada à farinha, virava uma saborosa paçoca. Pusera ainda queijo de coalho e rapadura e, para matar a sede, uma cabaça com água fresca.

Antônio Bezerra, ao lado do padrinho Tano, checava pessoalmente se os arreios de seu cavalo e a sela estavam bem colocados. O restante dos vaqueiros, todos encourados, montados em seus burros, aguardavam a partida da tropa. Estavam em junho, mês de festa e fartura para os sertanejos. Iriam recolher o gado que estava solto, para ferrá-lo e separá-lo. Devido à seca do ano passado, não deveria haver muito bezerro novo, mas com o inverno deste ano, embora não muito regular, encontrariam um bocado de vacas amojadas.

Desde o tempo em que o gado era criado solto, sem cercas delimitando o pasto, junho e julho era época de apartação. Juntavam os melhores vaqueiros da região e os melhores aboiadores e saíam no encalço do gado, geralmente perto de alguma aguada, para fazer a divisão e a ferra. O gado que não era pego, chamado de barbatão, vivia solto na caatinga. Deste costume antigo, surgiram as corridas de boi e, posteriormente, as vaquejadas. Com a chegada do algodão, a pecuária passou a ser limitada por cercas de arame ou pedra. A apartação foi perdendo seu sentido, mas as corridas de boi, que originaram as vaquejadas, permaneciam vivas e faziam as festas dos vaqueiros.

Após a contagem de seu gado, Antônio Bezerra iria, com seus vaqueiros, para Fazenda Macacos, de propriedade de seu pai, o Coronel José Bezerra, para ajudar na reunião das reses. Aproveitariam a oportunidade para derrubar bois, mantendo a tradição das antigas apartações. O Coronel era um vaqueiro nato e não dispensava as derrubadas de boi.

O vaqueiro era o rei do sertão. De guarda-peito e perneira, montando em seu cavalo, o gibão era seu manto, o chapéu, sua coroa e a vara de ferrão, o seu cetro. Seu reinado ficava abaixo de sua sela. Seus instrumentos de trabalho eram um par de esporas, uma chibata, um bom cavalo, uma munheca forte e um aboio marcante. Correndo atrás de bois, equipara-se a eles, numa disputa natural de forças.

No início do século XX, como na época das apartações, o boi corria livre após a porteira, sem cercas indicando o caminho. Vaqueiro bom tinha que dominá-lo logo na saída e a esteira era fundamental; caso contrário, embrenhava-se na caatinga.

Enquanto aguardam o boi sair, vaqueiro e cavalo transforma-se num só corpo: coração acelerado, respiração ofegante, rédeas curtas, patas irrequietas, olhos atentos. Ao primeiro sinal do boi, o homem coordena as atividades: com rédeas soltas e esporas firmes, a ordem é interpretada pelo animal, que dispara numa corrida desenfreada. São cinco animais expondo suas forças. Dois vaqueiros, dois cavalos e um boi. Doze patas na corrida, um rabo enrolado em mão forte e um cavalo a guiar a carreira do boi. São segundos de um duelo de forças entre gigantes, que parecem uma eternidade. Usando de sua técnica, a mucica, o homem interrompe de maneira brusca a corrida, pondo o boi no chão, com a poeira a cobrir quatro patas no ar. As oito patas restantes param, não de maneira tão brusca. Afinal, se o boi soubesse usar a força que tem, seria o homem o seu troféu.

Nesse ambiente, disputavam as mais belas corridas, os vaqueiros mais elegantes, os mais corajosos, os mais frouxos e os mais fortes. Quando a rês tinha uma perna quebrada, tratavam logo de sangrá-la, para alimentar a festança. Cavalos eram disputados e os mais ricos faziam de tudo para comprar os melhores exemplares, que muitas vezes pertenciam a um vaqueiro menos afortunado, que não se desfazia de seu animal por nada desse mundo. Afinal, cavalo e cachorro são animais inseparáveis dos vaqueiros.

À tardinha, quando a luz não permitia novas corridas, reuniam-se em torno do fogo para a conversa. A pinga aquecia o corpo e os espíritos, mas, mesmo em estado de embriaguez, mantinham o respeito à figura do Coronel.

Comentavam a formosura de alguma cabocla fogosa e seu namoro com alguém da região. De onde menos se esperavam, surgiam casos de namoros. Como muitos dos casamentos das famílias tradicionais da região se realizavam de acertos entre pais dos noivos, sem nenhum laço afetivo naquela união, e como as moças de “família” tinham um comportamento sexual mais recatado, era nos braços das caboclas que os homens mais afortunados encontravam suas grandes paixões.

A conversa rolava noite adentro, com alguma mesa de jogo para os mais viciados, mas na hora de dormir, cada um procurava a melhor maneira e o melhor lugar de armar sua rede. Às vezes, precisavam de um nó para encurtá-la; tudo dependia de seu tamanho e da distância entre os armadores. Na falta destes últimos, os caibros da casa faziam a serventia.

Depois de acomodados, relembravam as estórias de assombração, que arrepiavam os cabelos dos mais corajosos e faziam tremer os menos afoitos. Aqui e acolá, alguém preparava uma presepada com o medroso do grupo. O Coronel era afeito a essas brincadeiras. Depois dos dias de corrida, retornavam às fazendas para se aquecerem nos braços de suas mulheres.


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