Ouro branco

No dia que já foi considerado o Dia Nacional da Poesia, publico o poema “A Apanha”, de Zila Mamede.

Aproveito a oportunidade para disponibilizar mais uma crônica do livro “Sertão, Seridó, Sentidos”. Um sonho sobre a época do Ouro Branco povoando nosso chão.


Ouro branco

Uma imagem confusa, embaraçada, clareando aos poucos. No meio do campo tingido de flocos brancos, vi-me pequenina, de bisaco a tiracolo, recolhendo, com certa dificuldade, a plumagem agarrada à catemba. No tato, uma furada na flor seca tingiu de encarnado o algodão.

Ao meu redor, minhas amigas de brincadeira no sítio, seus pais e seus irmãos, todos curvados sobre as plantas que expunham os capulhos repletos do ouro branco do Seridó. Chapéus para proteger do sol e um ritmo de trabalho intenso.

Famílias inteiras dedicadas à colheita no mês de julho, cadernos descansando à sombra do juazeiro, tempo embaralhado. De um lado, algumas mãos depositavam, por cova, uns vinte ou trinta caroços, raleando para deixar três a quatro pés vingarem. No outro lado, as plantas já crescidas e limpas produzindo em borbotão. Na parte de trás do campo, mãos habilidosas dedicavam-se à catagem, derradeira apanha do ano. Mais adiante, a coivara queimando as plantas secas.

Vovô Chiquinho, como era carinhosamente chamado, aparecia bem nítido no meu sonho, com seu paletó de linho branco, fiscalizando e orientando os trabalhadores. Dirigi-me a ele, temendo ser repreendida por causa da mancha vermelha. Ele exigia que a pluma estivesse sempre limpa, livre de folhas, mato, pega-pinto, carrapicho, paus e catembas, garantindo a qualidade do algodão produzido em suas terras.

Tranquilizou-me com um sorriso. Ao redor, todos sorriram ao mesmo tempo. Dos bisacos, brotava uma plumagem branca crescendo incessantemente, esparramando-se sobre o chão, deixando apenas uma trilha por onde passava a carroça cheia de fardos, dividindo ao meio a colheita: de um lado, o caroço, a capinadeira, o boi, o veneno e o dinheiro para tratar da roça; do outro, mãos trabalhadoras e mais dinheiro.

Flutuei sobre os flocos brancos que ocupavam indiscriminadamente os espaços vazios. Perdíamos o lugar para brincadeiras no interior das casas. Sobravam os terreiros, os riachos e os lajedos para tanger gado de osso, arear panela com bucha vegetal e areia de rio, jogar pedrinhas.  

Sonho tomando corpo numa usina enorme de descaroçar algodão. No centro, uma balança. No prato da direita, fardos de algodão mocó, que não é bicho roedor, mas fibra longa de qualidade. No prato da esquerda, moedas fazendo o contrapeso. No travessão, trabalhadores tateando o dinheiro, vestindo a família, comprando reses, fazendo negócios.

E eu ali, retirando manualmente os caroços escuros da plumagem branca. De repente, no lugar do furo, uma picada. Um inseto bicudo agarrado a meu dedo. Tentava desvencilhar-me, chacoalhando a mão assustadoramente. Para onde o dedo apontava, o algodoeiro murchava, desfolhava, secava. O encantamento transformou-se em pesadelo.

Os sorrisos cessaram. No lugar do branco, a terra seca batida. O povo sumiu, embrenhando-se mundo afora. Fugido feito barbatão, sem ferro, sem terra, sem planta para cultivar. Uma chuva fora de época, babugem crescendo rapidamente. O campo esmaeceu, virou pasto para pecuária.


Zila Mamede

A APANHA
 
No verde o espanto cresce, de repente
se enramam tabuleiros e baixios,
renascem ventanias, sons raízes,
 
nervuras duma terra que desperta
alucinadamente a fecundar-se.
Agora é tudo um sol encantamento
 
nos acres cultivados em xadrez.
As ramas do algodão reverdecidas
habitam-se de flores amarelas
 
irresistindo à chega dos casulos.
Branca oferenda mostra-se o plantio
quando revinda a apanha. Apanhadores
 
irrompem dedilhando fibra e hastes:
estendem nas clareiras alvos seios
de carregadas plumas pelas aves.
 
Quando a lavoura escuta as vesperais
se cala, pois há lábios fatigados
cantando sua apanha no paiol.
 
Lenta, lá fora, no rocio, a seiva
fia maçãs, funda capuchos, gomos;
as ladainhas descem dos oiteiros,
 
cansaços se horizontam nas esteiras
onde é o amor, sementa, lavradura
nas noites desse algodoeiro chão.

Para quem gosta de Sertão, clique no Menu / Livros e navegue entre a vida de José Bezerra de Araújo no livro “No Rastro das Águas” (em capítulos) ou nas crônicas de Sertão, Seridó, Sentidos.

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14 comments

  1. Uma viagem no tempo desse Serido de tantas estorias…Tenho muitas lembrancas da infancia nos Quintos de Parelhas!!! Revivi com o seu texto maravilhoso Elza!!! Lindo poema de Zila Mamede!!!

    1. Muito obrigada Ítalo! Lembranças da infância em contato com a terra.😘

  2. Parabéns, gostei do texo, claro, leve, faz uma viagem no tempo e me fez relembrar o ciclo do algodão aqui na serea de Araruna. Ainda hoje temos várias casarões tombados, os quais foram edificados com o dinheiro do algodão e outros do café É comum andar pela cidade e ver brasões com o algodão na parte superior das casas. Lembranças de uma época.

    1. Muito obrigada Ricardo. Lembranças de um ciclo econômico que alimentou muita gente.

  3. Maravilha Elzinha!
    Retrato tão perfeito que mesmo para quem não vivenciou essa experiência, consegue se enxergar no seu cenário. 👏🏻👏🏻👏🏻😍

    1. Muito obrigada Lucina! Memórias de uma infância feliz, pisando em chão de raízes. Ouro branco que povoou o Seridó. Beijos

  4. Emocionante, imaginar aos seus versos o que representava e o que deixou de ser a riqueza do algodão para o serido.

    1. Zé Neto, uma riqueza perdida, mas não de tudo, porque enraizou valores na civilização seridoense que perduram até hoje.

      1. Lindo Elzinha! Você me fez voltar as férias da minha infância em Currais Novos.
        Parabéns!
        Texto lindo!

        1. Oi Telma, tempo de uma infância feliz! Seria muito bom se o mocó ainda permanece alimentando esse chão. Muito obrigada 😊

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