Invernada

Escrevi essa crônica em 2008, quando o inverno chegou abundante em nosso sertão. De lá para cá, a chuva resolveu dar uma trégua, a estiagem assolou toda uma região. Passamos sete anos com pouquíssimas chuvas, chegando até a secar o açude Marechal Dutra, conhecido por Gargalheiras, no município de Acari/RN.

Esse ano de 2019, as águas estão voltando com força e parece que teremos um bom inverno, com os reservatórios acumulando água, as plantações brotando, a fartura chegando.

Decidi postar a crônica “Invernada”, publicada em 2014 no livro “Sertão, Seridó, Sentidos”, de minha autoria, como forma de manifestar a satisfação do sertanejo, ou de todos aqueles que têm raízes no sertão com a chegada da chuva como fonte de vida, torcendo para ver o famoso açude sangrando novamente.


As notícias chegam na velocidade das águas. Os rios correm de barreira a barreira, de toda largura, com a correnteza levando tudo em seu entorno. Estamos em março de 2008, e a previsão de bom inverno para os anos de final quatro concretizou-se em dobro.

Rapidamente organizamos um domingo diferente, seguindo o rastro das águas. Sertanejos de origem, apesar de moradores da Capital, partimos eufóricos, sedentos de chão molhado. Primeiro destino: Coronel Ezequiel, próximo a Santa Cruz, onde as chuvas chegaram vigorosas, derrubando pontes e ilhando a cidade.

De lá, ingressamos no Seridó, com destino ao açude Dourados, em Currais Novos. Na estrada enlameada, o tráfego intenso de pessoas, bicicletas, motocicletas e carros – todos convergindo para a sangria esperada por anos a fio.

O sangradouro não é alto, nem dá para cobrir um homem em pé, mas o importante é o volume do líquido mágico, transbordando felicidade para um povo que banha a alma aliviada. Alguns nem chegam a entrar na água; basta o olhar embevecido na beleza do momento.

Continuamos nossa viagem, esbarramos no rio cheio, levando para longes as águas que sobejavam dos reservatórios. Paramos para admirar a neblina cobrindo a Serra do Chapéu. O céu mudou rapidamente de cor, dominado por um matiz violáceo ameaçador e, ao mesmo tempo, tão alentador. Nuvens pesadas, paradas no espaço, prontas a desabar. O relâmpago clareou a tarde escurecida e um estalo forte ecoou sobre a Aba da Serra.

No meu íntimo, relembrava, quando criança, os dias de inverno na Cacimba do Meio. O som arrebatador nunca me assustou; sempre gostei de sentir a natureza reverberando em meu ser, exibindo sua força sobre os mortais, refletindo um ser verdadeiramente superior. Admiro, extasiada, a claridade ofuscante do relampejar, seguida do rugir estrondoso do trovão.

Testemunhamos um momento raro em terras seridoenses. Logo a chuva começou a desfiar, engrossando os pingos, encharcando o solo, emendando as goteiras. Entusiasmados, eu, meu pai, minha sogra e sua prima sonhamos acordados, embalados pelo barulho da chuva na telha; mas as obrigações do dia seguinte prevaleceram, impedindo uma estadia prolongada no sertão de rara invernada vigorosa.

Seguimos para Acari, com direito a uma parada nas margens da rodovia. A água derramava-se sobre os lajedos, formando cachoeiras que inundavam os sentidos dos banhistas enlevados.

Chegando ao Gargalheira, serpenteamos pela antiga estrada de ligação, margeando as águas que se avolumavam açodadamente. No sangradouro, a chuva atrapalhava a visão, mas percebia-se, de todas as direções, o líquido sendo despejado, formando marolas de cores mutantes. Apostamos na sangria para os próximos dias.

Erramos por pouco. Na manhã da segunda-feira, o choro que lambeu a parede transformou-se, rapidamente, num dos mais bonitos espetáculos da região: a paisagem das serras rochosas represando as águas, que verteram impetuosamente pelo alto sangradouro do açude Marechal Dutra.

Com o entardecer prematuro, decidimos voltar a Natal; teríamos muita chuva na estrada. Planejamos um retorno mais demorado, suficiente e necessário para revigorar o corpo e acalentar o espírito. Nem imaginávamos que a intensidade das águas viraria chuva de castigo, enchendo rios, arrombando açudes, inundando cidades, tingindo de ocre o verde atlântico dos estuários.



Orquestra Sinfônica de Teresina e João Cláudio Moreno – A Volta da Asa Branca (Luiz Gonzaga)

Acesse também: Serra de São Bento

Leia também

1 comment

  1. Aí Elzinha essa crônica me deixou o tempo todo com arrepios de tanta emoção…ela me remeteu a um passado que guardo com carinho, de minha infância, na saudosa Fazenda Serrote,de meu avô materno. E viva nossa infância que foi tão prazerosa…..bjs

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *