Motorista de ciclista

As palavras “paitorista”, “maetorista”, “votorista” foram introduzidas ao dicionário informal, mas será que inventaram alguma denominação para motorista de ciclista? Não que eu saiba, mas esta função está cada vez mais presente. Trata-se da pessoa que vai buscar o ciclista no final de trilhas ou passeios distantes, quando o percurso não permite o retorno pedalando, por causa da exaustão.

Aí então a cronista resolve ir buscar o maridão no final da pedalada. Não que seja uma imposição, mas uma opção, porque no caminho o olho de fotógrafa pode registrar cliques interessantes. A nova função termina sendo uma diversão para a motorista.

Numa dessas viagens, chamei para me fazer companhia o amigo Wilame Galvão, artista excêntrico e mutante, feito rio intermitente que corre novo a cada invernada. Tínhamos como destino a cidade de Passa e Fica, na fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba, mas no meio do caminho tinha um castelo sobre a pedra.

A primeira impressão lembra um castelo à beira-mar, brincadeira de criança rapidamente desfeita sob a influência das ondas avançando sorrateiramente sobre a areia.

Mas lá na Serra da Tapuia, em Sítio Novo, a água escassa não tem força suficiente para desmanchar o alicerce robusto. As paredes estão assentadas sobre as pedras abundantes que firmam o piso em ondulações marcantes.

Zé dos Montes ergueu sobre o lajedo um castelo, daqueles que permeiam o imaginário infantil. Criou um estilo próprio. Mescla de castelo medieval e palácio bizantino, com cúpulas pontiagudas e arredondadas finalizando oitenta e três torres pintadas de branco.

As inúmeras torres remetem aos minaretes muçulmanos, mas o interior abriga imagens de santos católicos, marcando a fé inabalável do sertanejo protegendo o lugar. Começo a subir os diversos degraus do lugar. Em cada canto, uma porta me leva à parte externa, rodeada de sentinelas desabrigadas de gente, permitindo a passagem do vento forte e insistente de agosto.

Lá de cima, vislumbro um serpenteado correndo em direção à estrada, lembrança das obras do arquiteto catalão Gaudí, em pleno sertão nordestino. Lá embaixo, sombrinha em punho, sentado sobre o lajedo com ar contemplativo, meu companheiro aguarda pacientemente meu retorno – fidalguia sertaneja. Viaja em inquietos pensamentos, inspirações da alma de artista.

No ponto mais alto do castelo, um quarto em quadrado, com janelas em cada parede, relembra a habitabilidade do lugar. Seu idealizador abandonou a morada, pouco recomendada para um homem de idade avançada, diante dos inúmeros degraus.

As incontáveis janelas permitem a entrada da luminosidade, trazem a visão em peças de dominó, que se completam no terraço panorâmico do alto do castelo, subindo aos céus, projetando a robustez do seu alicerce.

Desço os degraus cuidadosamente e retorno à estrada, trilhando caminhos, abrindo porteiras, rodovias de asfalto, estradas de barro, fotografando as paisagens do nosso Estado. Feliz com a mais nova descoberta, em razão da minha função de motorista de ciclista.



“Tudo sai do grande livro da natureza.”

“A arquitetura é a ordenação da luz; a escultura é o jogo da luz.”

“Originalidade consiste no retorno à origem; assim, original é aquele que retorna à simplicidade das primeiras soluções.”

Antoni Gaudí


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4 comments

  1. Parabéns, Elza!
    O blog ficou muito bacana, com uma diagramação de muito bom gosto.
    As crônicas misturam o estilo narrativo com o lirismo poético que já é uma característica dos seus escritos. São de agradável leitura, mas, ao mesmo tempo, evidenciam seu especial domínio da semântica e da gramática.
    Sua iniciativa é uma prova de que a aposentadoria pode ser uma etapa produtiva da vida.
    Siga em frente produzindo com sensibilidade.

    1. Oi Ricardo, que bom receber esses elogios de um leitor tão experiente como você. Fico muito feliz com suas observações e percepções de meus escritos. Vamos juntos curtir uma aposentadoria produtiva, seguindo as pedaladas e os novos horizontes a descobrir. A propósito, como é mesmo o apelido carinhoso de sua bike?

      1. Oi. O apelido foi colocado por Jacqueline e denota um certo despeito: Fofinha.

        1. Não concordo com o despeito, é ciúme mesmo. Palavra de mulher de ciclista.

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