No Rastro das Águas – Capítulo 2

Há dias, Ritinha vinha sentindo algo diferente, porém não sabia se era o peso da barriga ou a aproximação do momento tão esperado, já que por suas contas não chegaria à segunda quinzena de agosto. As últimas providências tinham sido tomadas: o enxoval estava lavado, passado, desinfetado no braseiro com alfazema, guardado no baú junto à cama, deixando um cheiro agradável no quarto. A parteira estava de sobreaviso e as galinhas trancadas, sendo cevadas para o mês do resguardo.

Enquanto verificava cada detalhe em sua mente, sentiu uma fisgada no pé da barriga, não era a primeira nas últimas horas. Pelos sintomas apresentados, estava na hora de mandar chamar a parteira. As contrações aumentando faziam brotar as mais diversas emoções: ansiedade, dor, expectativa, medo, alegria.

Sentimentos únicos. Privilégio da alma feminina, que só quem está prestes a dar à luz sabe avaliar. Mas eram emoções silenciosas, guardadas nas entranhas de seu ventre. Rita, aos dezenove anos, como mãe de primeira viagem e, principalmente, como pessoa que vive em contato direto com a natureza, tirando dela seus ensinamentos, trata logo de apaziguar seus anseios com uma simples comparação: se os bichos fêmeas são capazes de desempenhar com tanta facilidade esta função, não há de ser diferente com as mulheres. Era rezar para que tudo corresse bem.

Filha de Manuel Salustino Gomes de Macedo, proprietário de terras nas nascentes do Potengi, e de Ananília Regina de Araújo, que tivera vinte e um filhos, dos quais somente nove escaparam, Ritinha pensava em sua mãe, para arranjar coragem na hora do parto.

Antônio mandou seu morador selar o animal mais ligeiro da fazenda. A ordem era para ir num pé e voltar noutro, melhor dizendo, ir e voltar num galope só. D. Clara, a parteira dos ricos da região, deveria chegar o mais depressa possível, e seu mandado foi cumprido à risca, dentro dos limites de locomoção daquele tempo. Sua chegada trouxe um pouco de tranquilidade a Ritinha, que já estava por escutar o choro daquela criança tão esperada. Com um pouco mais de esforço pôde, finalmente, explodir em felicidade com a visão de seu filho, que chegava irradiando saúde naquele reclame choroso.

Suas preces foram atendidas. A alegria veio em dose dupla: tinha em casa uma criança saudável e, principalmente, dera a Antônio um primogênito. Depois de limpo, botaram azeite quente de carrapato para secar logo o umbigo, amarrando o cueiro na cintura, para que ficasse bem protegido, pois logo que caísse deveria ser enterrando no mourão da porteira para trazer sorte e prosperidade. Uma touca de arminho, feita com as penas de pato, enfeitava a cabecinha inocente. Agora, era manter o resguardo, para depois batizá-lo nos ensinamentos da Santa Igreja Católica.

O resguardo transcorria nos moldes convencionais. A mulher ficava dentro de casa, alimentada com as galinhas cevadas especialmente para a ocasião, desde que previamente presas para que sua carne estivesse bem limpa. Durante trinta dias descansava em seu quarto, com as janelas fechadas, protegidas do ambiente externo. Ninguém podia sentar em sua cama. Sinhá Cândida, a tratadeira, cuidava da criança, que era mantida bem protegida, acompanhando o resguardo da mãe, enrolada em tantos panos quantos fossem necessários para que não tomasse vento. Todo o cuidado era pouco para uma época em que os casos de mortalidade infantil alcançavam índices elevados.

Caso a mãe não tivesse leite suficiente para saciar a fome da criança, já dispunham de cabras, cujo leite substituiria o materno. Nestes casos, as cabras eram tratadas com especial zelo, consideradas abençoadas, por permitirem a sobrevivência de crianças famintas.

Agradecendo a todas as graças alcançadas no nascimento e no resguardo, e vendo aquela criança forte e saudável, como bons religiosos, Antônio Bezerra e Ritinha trataram logo de providenciar o batismo de seu filho, como mandava a Santa Igreja. Em 08 de setembro de 1908, após os trinta dias de resguardo, José Bezerra de Araújo recebeu o sacramento, na Matriz de Currais Novos, tendo como padrinhos os avós maternos e como celebrante o vigário Francisco Coelho de Albuquerque.


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4 comments

  1. Como era simples e mágico, antigamente ter um filho.As coisas vão se modernizando
    , e essa geração nova não conhece os costumes antigo, como o resguardo regado a galinha é o umbigo tratado com azeite quente

    1. Bom dia Virgínia! Os costumes dos nossos antepassados que não voltam mais.

  2. Quanta riqueza cultural traz essa narrativa!!! Amo essa leitura!!

    1. Bom dia Nildinha! Esse é o livro No Rastro das Águas, vou liberando um capítulo por semana, resgatando os costumes do Sertão de antigamente.

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