No Rastro das Águas – Capítulo 3

Já se passavam três meses desde o nascimento. A vida transcorria normalmente na fazenda. Sem energia elétrica, o sol encarregava-se de determinar o horário das tarefas diárias. Acordava-se bem cedo. Às três horas da manhã, o silêncio da madrugada era quebrado pelos primeiros mugidos dos bezerros que clamavam por um pouco de leite, não sem antes escutarem o galo que desde a uma hora da madrugada fazia seu primeiro canto ecoar pelo terreiro.

Antônio Bezerra levantava-se para comandar o trabalho de ordenha no curral, pois como todo proprietário de terra da época, participava diretamente das atividades da fazenda, junto com seus moradores e vaqueiros. Em virtude da estiagem no segundo ano consecutivo, a tirada do leite estava reduzida. Após o desmame, depois de distribuída alguma ração para minorar a fome dos animais, soltava-se o gado nos campos de algodão, à procura dos últimos resquícios de pasto. O cheiro do café forte, que preparado na cozinha, espalhava-se no ar transformando-se num convite a um gole daquela bebida quente, que afastava a frieza da madrugada.

Ao quebrar da barra, os passarinhos enchiam de canto o alvorecer. A casa da fazenda já entrara em seu ritmo normal. O leite, ainda morno, era separado para ferver e descansar no soro para coalhada. Os mais fracos ou doentes tomariam o leite ferrado, fervido nas pedras brancas em brasa. Os demais, que não aproveitaram o leite morno do curral, saboreá-lo-ia acompanhando de jerimum ou batata. A lenha era trazida para alimentar a trempe e o fogão.

Um banho de cuia limpava a alma para as tarefas diárias. A água era economizada, pois não podia haver desperdício. Depois de lima a cacimba, os barris eram enchidos, presos aos cabeçotes das cangalhas e transportados no jumento, para o gasto da casa. Lá chegando, a água era despejada diretamente nos potes, tomando-se o cuidado de coarem-na com panos de algodão; ali permaneceria resfriada pela cerâmica de barro.

Rita distribuía as tarefas para a criadagem e comandava pessoalmente os afazeres domésticos, que não eram poucos, considerando-se a inexistência de aparelhos eletrodomésticos que tanto facilitariam a vida da dona de casa moderna. O café tinha que ser torrado e pilado, o feijão debulhado, o arroz batido para retirada da casca, a carne salgada e curtida ao vento, e depois pilada para paçoca, o fogo controlado, colocando-se mais ou menos lenha e abanando-se quando necessário.

Enquanto isso, escanchado em seu animal, Antônio percorria a fazenda verificando o estado das cercas, a água da cacimba, o gado e os campos de algodão, que quase nada produziram. Deus haveria de mandar um ano bom de inverno, para compensar as amarguras da estiagem. O sol castigava o solo batido. De quando em quando o cavalo tropeçava num seixo de pedra, enquanto um vento quente espalhava a poeira no ar. O compasso lento, que sempre marcava a época de seca, refletia o desalento dos sertanejos em geral. Dizia-se que o calor escaldava os ânimos.

Entre oito e nove horas, almoçavam. A comida era basicamente feijão, farinha, rapadura, carne-de-sol, jerimum e batata-doce. A mistura, conforme se referiam à carne, variava entre carne-de-sol, galinha, carneiro, alguma caça ou peixe seco. As carnes frescas, só em dia de feira ou quando se matava algum animal, já que não existia outro método de conservação a não ser o sal e, mais raramente, as cinzas. Seridoense não era muito de sobremesa, mas apreciava um mel de rapadura com farinha ou queijo de coalho, ou um bom chouriço.

Do pingo do meio dia até à viração da tarde, com o sol a pino e o mormaço a esquentar o juízo, parava-se para um descanso. Uma rede no alpendre era a melhor maneira de amenizar o calorão. Hora de calmaria. Até os bichos procuravam uma sombra na escassa e desnuda vegetação da região, para escapar do calor fustigante. Tudo parado. O silêncio do momento só era quebrado por algum calango nos garranchos secos da caatinga, ou pelo canto da cigarra.

Após o descanso, retornavam às atividades. Tinham que cortar cardeiro para alimentar a vacaria, já que o restante do gado estava solto na caatinga ou nos campos de algodão.

O jantar era servido à tardinha, para aproveitar os últimos raios de sol. Com o entardecer, a passarada recolhia-se aos seus ninhos, as galinhas aos poleiros e as vacas eram presas novamente. Na hora de apartar os bezerros, novos mugidos de reclamação.

Aos poucos, a quietude toma conta da fazenda. Os candeeiros são acendidos. A estrela-d’alva surge no céu informando o cair da noite, reinando solitária até a chegada de suas companheiras, que iluminam aquela imensidão escura. A lua aparece sorrateira. A ausência de outras formas de luz realça ainda mais sua beleza. É a hora do anjo. Como bons devotos, prestam homenagem à Virgem Maria rezando um terço e agradecendo por mais um dia de trabalho. É a fé do povo sertanejo renovando-se a cada dia.

Ao cair da noite, o alpendre da casa grande virava ponto de encontro: o lugar de se reunir para contar causos, namores e histórias. Foram desses encontros noturnos que surgiram tantas histórias que até hoje fazem parte de nosso folclore. No paleio, o que predominava eram as conversas sobre chuva, além das mais inacreditáveis histórias de Trancoso. Como a expectativa agora era para os primeiros sinais de inverno, cada um apostava em suas previsões. O cansaço da lida tomava conta do corpo; estava na hora de se recolherem.

Aos cafus, uma rodada de coalhada, adoçada com raspas de rapadura, encerrava o dia. O silêncio da escuridão era quebrado, ora pelo chocalho do gado, ora pelo pio da coruja. Era um momento revelador de quanto o homem rural estava interligado à natureza e de quanto o progresso iria distanciá-lo de suas origens.


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2 comments

  1. Como um pintura realista para meus olhos, mas não sei porquê tantas mudanças houve na nossa vida , que me angustiei! Kk, nao sei se aprobando ou não as mudanças!!!

    1. As mudanças são sempre encaradas com desconfiança. Quando o tempo passa, a gente olha para trás e vê como tudo aquilo que nós estranhamos era tão bom. Fica sempre uma saudade dos tempos mais distantes.

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