No Rastro das Águas – Capítulo 6

(…)

Enquanto esperava pelo almoço, sentado no tamborete na porta de casa, observando o sol castigando a paisagem e acompanhado de seu fiel cachorro, Tano viu Antônio Bezerra aproximando-se ligeiro, com um sorriso nos lábios. Conhecendo aquela cara desde menino e deduzindo do que se tratava, esboçou um certo ar de sabedoria. Segurou os estribos e as rédeas do cavalo, enquanto Antônio apeava. Na cumplicidade de experiência e instinto, trataram logo de organizar as tarefas dos próximos meses, na esperança de um ano regular de inverno.


Sinhá Cândida abanava o ferro a carvão, esperando as brasas esquentarem para passar a roupinha de José. Com um zelo de mãe, queria que ele estivesse bem arrumado na sua ida à sede do município. Com a roupa bem alvinha, cheirando a alfazema, iria parecer um anjinho. Depois de engomada, deu uma leve sacudida para esfriar mais rápido. Antônio Bezerra estava apressado e não seria bom contrariá-lo.

Ritinha caprichava, dando os últimos retoques em seu filho. Para si, bastavam uma penteada no cabelo e umas gotas de alfazema: estava pronta. Antônio aguardava impaciente na sala. Não sabia o porquê de mulher demorar tanto para se arrumar. Desse jeito, iriam chegar atrasados para a missa de celebração do Natal.

O Natal chegara e com ele o espírito de confraternização. A população rural convergia para a cidade, reunindo-se na Igreja, celebrando o nascimento do menino Jesus. As orações eram direcionadas, mais uma vez, para que Nosso Senhor tivesse piedade daquele povo sofrido e enviasse um bom ano de inverno. Era como se estivessem renascendo junto com o Menino e esperassem por um sopro de vida, que dependia da chegada da chuva. Além da súplica, entoavam hinos de louvor e agradeciam o transcorrer de mais um ano.

Como a ocasião era de confraternização, atualizavam os mais diversos assuntos, chegados através de cartas, de boca em boca, ou pelas notícias trazidas pelos viajantes, já que ainda não existia outro meio de comunicação. Os mais velhos comentavam os acontecimentos políticos e a expectativa da próxima safra. Especulavam sobre o declínio da cana-de-açúcar e a ascensão do poderio econômico do algodão que, consequentemente, iria refletir na política estadual.

A indústria crescia no Sudeste do Brasil. As greves continuavam em busca de melhores condições de trabalho. O governo de Afonso Pena aprovou a lei que instituiu, naquele ano, o Serviço Militar Obrigatório. Circulavam notícias da chegada do primeiro navio, trazendo japoneses para o país.

A ida à “rua”, como costumavam chamar o centro da vila, era um evento especial para as mulheres, que mais raramente se encontravam, diferentemente de seus maridos. Além de demonstrarem suas devoções religiosas, aproveitavam essas ocasiões para se informar sobre as novidades de toda redondeza. Era um namoro novo que se comentava, um novo filho para fulana, a rigidez de algum pai mais zeloso que insistia na ausência de janelas nos quartos das moças, ou o noivado de alguma prima.

Toda orgulhosa e elegante, sentada no silhão de seu cavalo, Ritinha carregava em seu colo o pequeno José. Após a Missa, iriam para a fazenda Aba da Serra, de propriedade do Coronel José Bezerra, seu sogro, para onde convergia a parentada em dias de festa. O Coronel, como todo bom seridoense, gostava de casa cheia e tinha um especial carinho para com as crianças.

A celebração do Natal, embora bastante respeitada, não era a festa mais comemorada pelo currais-novense, que guardava esta honraria para sua Padroeira, Santana, no mês de julho. Talvez isto seja explicado pelo fato de o mês de dezembro ser um mês seco, quente, triste e cheio de expectativa. Julho, ao contrário, é um mês fresco, cheio de vida, alegre, quando se desfrutam da fartura das colheitas.

No retorno para casa, muito cansaço, depois de um dia de festividades. O passo marcado do cavalo embalava os sonhos do pequeno José, que se aninhara nos braços de sua mãe. Aos poucos, acostumava-se com o lombo do animal, peça fundamental na vida de todo sertanejo, pois atuava como principal meio de transporte e como importante ferramenta de trabalho, percorrendo os caminhos mais espinhosos, no encalço do gado e desbravando serras e caatingas.


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2 comments

  1. Sempre quis ler algo do gênero, pois só conjecia José Lins do Rêgo. Com a presente obra, abre-se um novo leque literário para preencher o nosso vazio cognitivo. Parabéns pelo livro e que venham outros.

    1. Uma honra me colocar ao lado de José Lins do Rego! Navegue à vontade no meu blog, vai encontrar as crônicas publicadas no meu livro “Sertão, Seridó, Sentidos”. Muito obrigada!

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