No Rastro das Águas – Capítulo 8

(…)

O solo seridoense, embora ressecado e castigado por constantes estiagens, é um solo potencialmente fértil e suficientemente vigoroso para fazer brotar, se suas entranhas, as sementes que permanecem, por tanto tempo, adormecidas. As secas fazem-no descansar, mas o certo é que com a chegada da água tudo renasce. O tempo agora era de roçar, plantar, limpar e colher!


Em janeiro ainda, caíram mais algumas poucas chuvas. Embora finas, fizeram brotar a babugem, que transformou em verde o triste cinza. O gado, acostumado a comer uma minguada porção de ração e a ralar o focinho na terra batida à procura de algum resquício de pasto que minorasse sua fome, fartou-se naquele tapete verde, que embelezava a paisagem. Seu esterco mudo e também o sabor do leite.

Com exceção dos juazeiros, que mantém sua folhagem na estiagem, de folha em folha as árvores cobrem-se exuberantes e frondosas. Seus galhos desnudos vestem-se das mais variadas formas. Aos poucos, exibem uma folhagem rica e vigorosa. Agradecidas, proporcionam ao restante dos seres vivos sombras refrescantes. O vento sopra, espalhando o frescor dos mais variados perfumes, enquanto balançam os galhos, provocando os espinhosos xiquexiques, que reinaram isolados na estação da seca. É o verde que chega ao Sertão. É a cor da vida, com seu perfume refrescante.

Como a terra que demonstra sua vitalidade, o sertanejo também extravasa suas emoções, direcionando toda sua energia na limpa do roçado e no plantio de suas sementes. De posse de enxadas e foices, toda a família parte para a lavoura, sem perda de tempo. Cada cova plantada enterra um pedacinho de vida e esperança. Trabalharam de sol a sol, para não perderem a ocasião. Logo tinham plantado suas roças e aguardavam, confiantes, a ajuda de Deus. Suas mãos estavam calejadas, mas os corações cheios de esperança.

Fevereiro trouxe chuva suficiente apenas para garantir a plantação. Os pés de milho cresciam vigorosos, junto com o feijão. Os algodoeiros, que sentiram os dois últimos anos, já apresentavam pequenas folhas, cobrindo seus galhos cinzentos.

Março chegou com um pouco de estiagem. Mas, no dia de São José, atendendo às inúmeras preces de seus devotos, o santo lhes mandou um bocado de água, para regar seus roçados e alimentar sua fé. Foi um dia de festa e louvor, com pagamentos de promessas e acendimento de velas. Uma chuva naquele dia era sinal de bom inverno. Os sertanejos agradeceram e renovaram suas esperanças, pois é disto que se sustentam. A cada seca, desalento e tristeza, contrastando com a alegria e vitalidade que irradiam a cada invernada.

Os milhos embonecaram e o feijão ramificou. Colhiam, agora, sua recompensa pela paciência, persistência e amor à terra em que nasceram e frutificaram; terra esta que sempre lhes respondeu à altura dos sacrifícios por que passam seus filhos. Dizem que seus frutos são mais doces e sua babugem mais forte. É o reflexo do descanso por ela experimentado, enquanto seus filhos se esgotam famintos.

Padrinho Tano encostou o jumento na porta da cozinha de Ritinha. Trazia na cangalha os caçuás cheios de milho e feijão bem verdinhos. Os moradores tinham mandado as primeiras espigas e vagens, que verdejavam em suas lavouras, para Antônio se fartar daquelas gostosuras. Estavam no final de abril e já colhiam os frutos do trabalho e da ajuda de Deus.

Ritinha providenciou mais braços para cozinha. Teriam milho cozido, pamonha e canjica nos próximos dias. Enquanto algumas mulheres descascavam o milho, limpando suas espigas, outras se encarregavam de ralá-lo e moê-lo. Ritinha costurava as palhas no formato das pamonhas. Grandes tachos eram postos no fogo, enquanto braços se revezavam, mexendo o caldo suculento, que aos poucos engrossava.

No final da tarde, a mesa estava farta. Milho cozido, pamonha e canjica, acompanhados de queijo fresco e uma panela de coalhada, com raspa de rapadura, despertavam o apetite nos olhares devoradores. A fartura da colheita, aos poucos, enchia a panela do sertanejo e amenizava sua fome.

Ritinha aproveitou para alimentar José, pela primeira vez, com as gostosuras provenientes do milho verde. Antônio Bezerra convidou os moradores mais chegados para se fartarem. Ao terminarem a ceia, a conversa estendeu-se pelo alpendre. Providenciaram querosene para os candeeiros e as mulheres acomodaram-se com um fardo de feijão verde para debulharem, enquanto escutavam as conversas de seus maridos. O clima era de alegria e até alguns repentes foram tirados. Os insetos também vieram, atraídos pelos candeeiros. Melhor para as bribas e sapos, que dividiam o alpendre em busca de alimentação. De barriga cheia, os sapos e pererecas coaxavam alegremente, anunciando o momento de fartura. Quando o cansaço chegou, recolheram-se para o descanso e o consequente preparo para mais um dia de lida.

Nem bem amanheceu o dia, os primeiros chuviscos começaram. Aos poucos, foram encharcando a terra já umedecida. Choveu durante toda a manhã e as águas começaram a descer. No início, pequenos riachos, que logo enlargueceram seus rumos. Quando se deram por conta, o rio tinha enchido de barreira a barreira. A meninada molhada, a fazer açudes no barro molhado, correu em direção às águas. Desciam na correnteza, desafiando a força da natureza, enquanto saltitavam em divertidos cangapés. José, nos braços de sua mãe, observava as brincadeiras e soltava gostosas gargalhadas. Seu pai, muito arteiro, tirou-o de sua mãe e banharam-se na chuva. Cuidadosa e precavida, Ritinha secou-o e agasalhou-o, temendo alguma doença.

Quando a chuva parou, o rio estava cheio. Para atravessá-lo naquele dia, somente com cordas amarradas de margem a margem, como forma de segurança. Melhor seria esperar baixar a força das águas. Os animais pisavam na terra encharcada, deslizando aqui e ali num pedaço mais lamacento e espalhando água das poças.

No almoço, tiveram feijão bem verdinho, com o caldo bem quente para espantar a frieza. José experimentou, pela primeira vez, o gosto daquele caldo tão saboroso. Uma careta foi sua resposta ao sabor desconhecido, mas logo se acostumou.

Após o descanso, Antônio Bezerra foi vistoriar pessoalmente os campos de algodão. Esta plantação não gosta de estiagem, mas também não aguenta água em excesso. Pelos seus cálculos, como o inverno não estava muito regular, não teriam grande safra, porém recuperariam grande parte da perda dos anos anteriores. Duas ou três limpas até a colheita, em agosto, garantiriam algum resultado.

No dia seguinte, quando o sol brilhou alto, Ritinha mandou lavar sua roupa guardada, encardida pela lavagem em águas de cacimbas barrentas. Com as águas mais tranquilas e limpas, era só baterem bem as peças e colocarem-nas para quarar num lajedo bem quente, que logo estariam tão alvas quanto as poucas nuvens do céu.

Observando a roupa quarar, pensou: maio estava chegando; era mês de novena à Virgem Maria e com pouco estariam no mês de Santana. Já era tempo de se preparar para a festa; José crescia rapidamente e de repente sua roupa ficava perdida. Da próxima vez que Antônio fosse à rua, encomendaria novos tecidos para confeccionar, ela mesma, os trajes da festa da padroeira.


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