102 anos de vontade própria

Aurélia Bezerra de Medeiros nasceu na segunda década do século XX, em 1917. Recebeu a rígida educação sertaneja, sob as rédeas de seus pais, José Bezerra de Araújo e Maria Dina Bezerra. Aprendeu muito cedo as tarefas da fazenda e adquiriu gosto pela máquina de costura, numa época em que quase tudo era fabricado em casa.

Aquela menina de pernas torneadas aprendeu a dançar com a vitrola a corda de seu pai, que fez as vezes de professor. Virou exímia dançarina e caiu na graça do médico recém-formado. Casaram-se em 16 de janeiro de 1937, Aurélia e Dr. Abílio Medeiros.

Dr. Abílio e D. Aurélia

Da união, nasceram e se criaram os filhos: Marly, Marne, Mirna, Marcelo, Mídia, Marciano e Márcio. Família grande que ela abraçou, além de tantos outros que foram por ela acolhidos em sua casa como filhos, inclusive minha sogra, Neide Cirne.

Tinha uma risada contagiante, mas mantinha-se firme nas suas decisões. Decidia por ela, seu marido e seu filho: nem eu quero, nem Abílio, nem Marciano!

Fez da máquina de costura a sua ferramenta de trabalho, daquele modelo com pedal. Torneou ainda mais as suas pernas. Mesmo com o adiantado da idade, não encontrava moça com pernas mais bonitas.

Adorava um carteado; seu jogo preferido era o buraco, mas também gostava do movimento das peças do gamão. Distração garantida para ver o tempo correr.

De suas mãos habilidosas saíram lindas tramas bordadas para vestir os recém-nascidos de várias gerações. Nos últimos tempos, aprendeu com sua filha a fazer patchwork e produziu colchas de retalhos, que preferia chamar de ketchup, numa clara aversão aos nomes estrangeiros.

Assim como sua mãe, a longevidade se fez presente. Ingressou no século XXI, sem dar bolas à passagem do tempo. Caminhava todos os dias e cuidava da alimentação. Abacate para o jantar era suficiente, preservando seu físico bem cuidado e pulando corda ainda aos noventa anos, para orgulho de seus netos, que exibiam a filmagem como exemplo de vida.

Costurou muitas histórias nos retalhos da vida, entre Caicó e Natal. A cada dia 31 de julho, a família reunia-se com os amigos para celebrar o seu aniversário. Extremamente religiosa, era devota de Santana e não passava um dia sem rezar o terço na hora da Ave Maria.

Completou 100 anos numa festa com os familiares e amigos. Firme e forte, para alegria de todos que desfrutavam a companhia de Lela (apelido para os íntimos). Mas como tudo na vida tem um ciclo, começou a sentir o peso da idade. Passou a permanecer mais tempo em casa, cessaram as caminhadas, a máquina de costura silenciou, assim como a Aurélia radiante.

Um dia resolveu ensaiar sua partida. No dia das mães, com os filhos todos reunidos, disse que não queria participar do café da manhã organizado para celebrar a data. Insistiram muito e a levaram para mesa. A vingança veio no dia seguinte: fechou a boca para conversa e comida e os olhos para o mundo. Foi um corre-corre no apartamento. O filho médico a examinou e disse que ela poderia estar em coma. Chamaram a ambulância. Quando já estavam prontos para levá-la ao hospital, Aurélia abriu os olhos e falou firme: hospital, não.

Soube, com toda dignidade, lucidez e coragem, enfrentar a sua hora. Ela mesma decidiu como seria, sempre teve vontade própria. Deu um basta; parou de se alimentar. Não adiantaram os apelos dos entes queridos. Tinhosa como ela só, manteve-se firme, como sempre fora. Sua vontade foi respeitada, recebeu toda a assistência em casa e ficou cercada dos seus. Descansou da longa jornada de 102 anos, no dia 15 de janeiro de 2020.


Celina Bezerra

MADRINHA LELA

Mulher de ferro!
Ou de bordados?
Quantos riscos, quanto riso,
gargalhada fácil!
Fez da vida, retalhos
de muita fé, muito amor a sua família!
Muitas amizades
construídas e preservadas.
Emendou estes e outros retalhos
com uma estética de grandes artistas!
Assim nos deixa o colorido
de uma vida corajosa e determinada!
Pedimos sua benção!

Cora Coralina

“Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir.”

Mario Quintana

A VIAGEM

Como é bela uma asa em pleno voo…
Uma vela em alto-mar…
Sua vida – toda ela! – está contida
Entre o partir e o chegar…

Acesse também: Alma renovada, Noite estrelada e Celebrando a vida.

Leia também

12 comments

  1. Parabéns Elzinha linda homenagem, Dona Aurélia foi uma pessoa ímpar, não foi sogra foi mãe vou sentir falta dela e muita saudade. .

    1. Muito obrigada Kithy. Você teve o privilégio de tê-la como sogra/mãe. Beijo grande!

    1. Obrigada Silvana, tudo inspiração na vida dessa grande Mulher!😘

  2. Parabens Elzinha. Como sempre acertou na mosca. Bela descrição de dona Aurelia.

    Sds Marne

    1. Tentei retratá-la da maneira mais fiel, pelas histórias e momentos de convivência. Uma figura humana ímpar. Obg Marne

    1. Sua mãe merece todas as homenagens, um exemplo de vida e fortaleza!

    2. Retribuindo um pouco todo o carinho que recebi de D. Aurélia.🙏😘

  3. Que exemplo, que determinação!!!
    Essa geração de hoje tem muito à aprender…gostaria de ter convivido um pouco
    para escutar suas estórias.

    1. Uma pessoa maravilhosa, de bem com a vida, mas firme nas suas convicções. Grande Mulher!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *