Domingo de descanso, acordo bem cedo. Notícia fresquinha do irmão caçula. Desperto ligeira: a chuva anunciada na noite anterior por Canindé rendeu 145mm. Na fazenda Queimadas, as águas correram rapidamente, transbordaram o açude grande ressecado por anos seguidos de estiagem, que está sangrando de ponta a ponta.
Vamos ver a sangria? É programa que enche os olhos do sertanejo e estampa o sorriso no olhar. Nada de domingo preguiçoso, é notícia que injeta adrenalina nas veias.
Rapidamente, a lotação do carro estava completa. Haroldinho, Rachel, Tonico, Elza e Cecília partiram em direção à fazenda.
Sandálias havaianas que não soltam as tiras na sacola, toalha, amendoim para enganar a fome e garrafa d’água para saciar a sede. Quem sabe se não ficamos presos em atoleiros?! Mulher prevenida vale por duas; não me satisfaço com o dobro, prefiro a multiplicidade.
Início de junho, estrada verde de se ver, jurema em flor. Nunca se viu águas em abundância nessa época do ano; geralmente, as sangrias ocorrem por volta da Semana Santa. Mas antes tarde do que nunca, diz o sábio ditado.
Para chegar à fazenda, atravessamos o rio da barragem da Cacimba do Meio, memórias da infância vieram à tona. Travessia na carroça, carros enguiçados com as velas molhadas, trator socorrendo os atolados, homens amarrados na segurança das cordas, cachorro abrigado na ponta da pedra quase submersa…
Dessa vez, o carro quatro por quatro não nos deixou em apuros. Nas temporadas na fazenda, em tempo de boas chuvas, era quase impossível atravessar de carro a sangria desatada. Ganhamos o conforto e perdermos a folia das enchentes.
Seguimos a estrada e o corredor de lama pareceu um tapete estendido para saudar os visitantes. Passamos tranquilos onde antes ficávamos quase sempre atolados. O coração acelerando para rever o açude da fazenda Queimadas.
Água por todo caminho acalentando o lamento de um povo sedento. Só faltou papai para a alegria ser completa, mas seus filhos estavam ali, perpetuando seu amor à terra dos ancestrais seridoenses.



Na fazenda, com os pés em terra encharcada, as mulheres da turma foram conferir o caminho das águas, antes de serem represadas no belo açude. Manuel como guia, subimos e descemos três enormes ladeiras do descambo da Serra de Santana até chegarmos às águas barrentas em canto constante.
Pedras formavam pequenas cachoeiras, mas a lama nos impedia de chegar até o local mais belo. Não tem importância, o que ficou registrado valeu a pena.
Desacostumado a pisar solo pedregoso e encharcado, o tênis de pandemia foi se desmanchando a cada passo, traduzindo a minha vontade de ficar em terra de pertencimento.
A turbidez das águas caudalosas passará. O mês de Santana vai chegar com banho em águas renovadas, sossegadas, translúcidas. Voltamos para casa com o coração transbordando a alegria de um bom inverno sertanejo.
Acesse também: Invernada, Um domingo diferente, A simplicidade de um dia de domingo, Corre que o verde está chegando.
15 comments
Maravilha de texto, Elzinha! Transporta o leitor para o lugar, ao ponto de sentirmos o cheiro da terra molhada pela chuva e a beleza do caminho das águas.👏👏👏👏
Água transbordando felicidade. Uma alegria molhada amiga. Muito obrigada 😘😘
Belíssimos registros. Novamente, me deu uma saudade danada da terrinha.
Um dia vou voltar. Prometo!!!
Elzinha, lendo o seu belo texto e lembrando das inesquecíveis férias que passávamos em Caicó e São Fernando! Não tinha alegria maior do que ver o açude sangrar! Vários banhos com boias de pneus de caminhão! E depois, escrever o nome no pé de cajarana! Que tempo bom!! Bjs
Oi Carla, prazer enorme em resgatar esses momentos de nossa infância no sertão. Muito obrigada, beijos
É aqui que mora o diferencial do SERIDOENSE, o zelo é um conjunto de tudo, se ama as pessoas, os pássaros, os animais a natureza. Isso é notório não na oratório, mas no concreto, na raiz. O SERIDOENSE é muito diferente, a força só permite uma coisa, a multiplicação do orgulho de ser SERIDOENSE.
Um amor à terra que se multiplica a cada geração. Seridó e sua civilização!
Elzinha, me senti na aventura com vocês. Imagino a explosão de memórias afetivas de um domingo que poderia ser como outro qualquer…
Um domingo especial! Banho de raízes sertanejas.
O passeio da sangria dos açudes na Fazenda Queimadas deve ter sido maravilhoso, mas ao ler o seu texto, me senti como se estivesse lá pela clareza e detalhes repassados em palavras! Detalhe: estava em minha casa deitado na cama. Que maravilha o passeio que vcs tiveram e, eu também! Parabéns!
George, escrevo a crônica com o coração transbordando a emoção de ver o sertão encharcado. Muito obrigada!
Belíssima crônica escrita com emoção o retorno a infância e seus ancestrais. A alegria do reencontro com a água e a natureza verde da mata antes ressequida pela inclemencia da seca no sertão do Seridó potiguar. É assim que Elza transborda a sua felicidade na doçura das águas,algo tão precioso e sagrado para todos. Parabéns Elza ! Mais crônicas a nos presentear com mais leituras … !
Íbero, você acrescenta minhas palavras. Fico feliz de transmitir essa sensação de encontrar o sertão molhado, reverberando a alegria da água e do verde. Muito obrigada, grande abraço.
Há uma cachoeira a uns 2 km subindo a serra por trás da sede aonde ficam os currais e cocheiras da fazenda aonde correm as águas que descem da serra e aonde tem uma pedra alta que faz cair água de uns 3 a 4 metros em uma piscininha de pedras que serve para um gostoso banho de cachoeira aí nas Queimadas. Fui levado por vitória a época… se ainda existir, vale a pena conferir.
Oi José Neto, seguimos esse caminho em busca da cachoeira, mas as águas ainda estavam muito barrentas, com lama, dificultando o acesso. Temos que aguardar um pouco para chegar até lá. Valeu pela dica. Beijo