No Rastro das Águas – Capítulo 19

(…)

Confiante em sua pouca experiência, José passou a exibir-se. Numa dessas disparadas, caiu em cima das pedras em frente à casa antiga que agora era ocupada por Tano. Seu pai, com o espírito bonachão e brincalhão, depois de verificar a gravidade do ferimento, deu-lhe apenas uma chamada, pois a queda encarregava-se de dar-lhe uma lição. O tombo abriu uma ferida enorme no braço de José, que pela profundidade e falta de pontos no local, garantiu-lhe uma cicatriz pelo resto de sua vida.


A notícia dos estudos para o ano seguinte deu a José um certo ar de maturidade. Achava que já possuía responsabilidade suficiente para novos desafios. Recuperado da queda que sofrera meses antes, passou a frequentar com mais constância a vila de Currais Novos, onde ia num galope só. Seus pais o tinham prevenido de que deveria chegar à fazenda sempre antes do jantar, às quatro horas da tarde. Ele próprio fazia questão de chegar antes do escurecer, com medo das assombrações noturnas do caminho.

Um pouco antes de sua ida a Touros, um acontecimento inédito sacudiu a calmaria da vila. Por causa da seca que assolava a região, engenheiros e técnicos do IFOCS percorriam o sertão nordestino, abrindo estradas e projetando a construção de açudes. Enquanto brincava no centro da vila, surgiu um moleque em disparada, tão assustado quanto eufórico, que não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Tentava contar a novidade que se aproximava de Currais Novos. Os meninos cercaram-no e conseguiram, a muito custo, entender o que ele queria dizer.

Tratava-se da chegada do primeiro automóvel que conseguira, por cima de pau e pedra, trafegar na estrada carroçável que dava acesso a Currais Novos. Seus habitantes iriam, por fim, conhecer o tão famoso meio de transporte, que encurtava as distâncias, permitindo uma comunicação mais rápida entre os diversos pontos do mapa. Trazia os tais funcionários federais.

O barulho do motor anunciou a chegada. Tão logo surgiu, foi logo cercado pela pequena multidão, que impediu sua movimentação. Seus ocupantes desceram e permitiram que os cidadãos matassem a curiosidade. José conseguiu, passando entre as pernas dos presentes, chegar até junto e passar a mão no automóvel, garantindo assim a percepção do “fenômeno”.

Com os olhos admirados e extasiados não arredavam o pé. Alguém apertou a buzina e o som estridente afastou assustados curiosos. A meninada perdeu a noção do tempo. Permaneceu por um longo período, admirando a máquina que transportava homens pelo mundo afora. Quando José se deu conta, já estava escurecendo; partiu numa disparada só, sem tempo nem de ter medo de assombração, só pensando na surra que iria levar, quando chegasse em casa.

Na fazenda Cacimba do Meio, todos estavam preocupados. Padrinho Tano preparava-se para sair à procura do menino levado. Ritinha transparecia uma certa apreensão, quando o cavalo surgiu num galope ligeiro. Estava pronta para aplicar seu castigo, nem esperou a explicação de seu filho, deu-lhe logo umas palmadas, que era para ele aprender a não deixar seus pais tão aflitos. José bem que tentou argumentar, mas não houve jeito. Apanhou, mas apanhou satisfeito.

Depois do corretivo, pôde então se explicar. Contou entusiasmado a novidade da vila. Não quis nem lavar as mãos que tinham tocado o automóvel. Diante da empolgação do menino, sua mãe, por dentro, ficou um pouco arrependida, mas não poderia deixar de aplicar o castigo merecido. José ficou tão eufórico que ela mandou fazer um chá para acalmá-lo.

Naquela noite, sonhou dirigindo um carro de verdade. Sacolejava nas estradas esburacadas, com a poeira a cobrir-lhe os olhos, fugindo de um redemoinho que ressecava tudo por onde passava, com uma buzina ao fundo anunciando sua aproximação, tentando alcançar o litoral. Acordou assustado, aliviado por se tratar de um pesadelo, mas triste por não estar dirigindo de verdade, mas quem sabe se um dia não possuiria um automóvel?

Pouco tempo depois, seu sonho transformou-se em meia verdade. Em novembro, partiram com destino à vila de Touros, no litoral norte do Estado, onde iriam permanecer uma temporada, fugindo do fantasma da estiagem. Ainda não era dessa vez que iriam utilizar o automóvel, mas a tão famosa viagem estava se concretizando. Antônio levou toda sua família para conhecer e desfrutar da paisagem litorânea, junto com uns poucos criados. Padrinho Tano, tristonho, acompanhou a partida, mas ficou na fazenda para cuidar da lida. José, por um momento, também se sentiu triste, como se estivesse abandonando seus companheiros de brincadeiras, mas a euforia da viagem afastou qualquer sentimentalismo.

A viagem transcorreu dentro do normal, mas José, com a curiosidade característica de sua idade, perguntava sobre tudo que lhe era desconhecido. Mesmo com a estiagem que se estendia até o litoral, pôde perceber as diferenças entre a vegetação da caatinga e da zona da mata. Descobriu e encantou-se pelo verde dos canaviais, pelo doce aroma da cana moída nos engenhos, pelo cheiro da brisa do mar. O contraste da paisagem provocou um encantamento que ficou armazenado lá dentro, para desabrochar bem mais tarde. Mas a surpresa maior ainda estava por vir.

Por mais que já tivesse ouvido falar, ficou paralisado diante de tamanha imensidão. Sertanejo de nascimento, nem de longe imaginava encontrar de uma só vez um volume tão grande de água. Acostumado a racionar qualquer quantidade do líquido precioso, deduziu que tamanha riqueza só poderia pertencer a um ser superior. De imediato, fortaleceu sua crença no poder de Deus. Até o som demonstrava sua grandeza. José permaneceu por um bom tempo, apenas admirando a obra-prima. Imaginava que nadando até a linha do horizonte chegaria ao céu. Disposto a explorar o desconhecido, perguntou ao pai se podia banhar-se, ao que o pai respondeu para ficar apenas na beira, pois seria bem diferente dos banhos a que estava acostumado. A água ia e vinha, convidando a um mergulho. Entrou devagarinho, estranhando o sal. Não encontrou a calmaria dos açudes nem a correnteza das enchentes dos rios, mas o balanço das ondas. Não se atreveu a ir muito longe, estava por demais satisfeito, afinal era seu primeiro contato com a grandiosidade do oceano.

Nos primeiros dias, estranhou o barulho da noite. Não tinha a calmaria do sertão, mas um estrondar constante das ondas quebrando na areia e o farfalhar das palhas dos coqueiros. Demorou um pouco para se acostumar, mas logo já saltitava alegra na praia, como se estivesse ali desde pequenino.

Os dias eram preenchidos com divertidos banhos de mar. O sol e o sal penetravam na pele, propiciando um estado de dormência, uma preguiça embalada pelos sons característicos da praia, com a brisa refrescante soprando do mar, bem diferente do mormaço que aquece o sertão. José descobriu o prazer da pescaria, trocou o galope no lombo do cavalo pelo deslizar da jangada no mar. Fez amizades com os pescadores locais e até ajudava, puxando a rede de arrasto ou molhando o pano da vela para aproveitar melhora a velocidade do vento. Descobriu o sabor do caranguejo, do camarão e do peixe fresco de água salgada, um tanto quanto diferente do peixe de água doce.

Mas aos poucos a saudade da caatinga foi tomando conta do seu interior. Passou a imaginar o quanto seria diferente se pudesse retirar o sal da água do mar e transportá-la para o sertão. A temporada passou rapidamente e logo, com pele bronzeada, teve que retornar aos antigos pastos, na expectativa do início das aulas e nas conversas que teria com seus amigos sobre sua experiência no litoral.


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