No Rastro das Águas – Capítulo 29

(…)

Chegou o dia de Yvete retornar a Ceará-Mirim e ele a Currais Novos. O moço elegante, viajado e conservador do sertão norte-rio-grandense provocou um interesse crescente na jovem senhorita. E ela, com seus ideais avançados, posto que vinha de uma região onde as transformações se processavam mais rápido, despertou admiração recíproca. O encantamento de José Bezerra pelos canaviais, que permaneceu tanto tempo adormecido, veio aflorar na pele de Yvete. Os encontros passaram a ser nos finais de semanas, quando ambos estavam na Capital. Rapidamente, em 11 de janeiro de 1935 selaram o compromisso de noivado.


O dia estava bonito, preparando-se para chover, como sertanejo gosta. Já bem próximo à casa da fazenda, Otávio deteve-se um instante: delineou as serras que o cercavam, com a saliência rochosa destacada em forma de bico de arara. Aspirou o cheiro forte de mato verde; abaixou-se, sentiu a terra molhada em suas mãos; arrancou uma rama e pôs-se a mascá-la; escutou o som do sertão verde – profusão de sentidos inundando sua alma. Apesar do inverno promissor, tinha um semblante preocupado.

Estavam às vésperas das eleições suplementares para o Governo do Estado. Acari era um dos municípios onde haveria nova eleição. Desde a noite anterior que se preparava para algum imprevisto. Tinha dormido acompanhado de Francisco de Sales Meira e Sá Neto, seu primo e vizinho, conhecido por Dr. Chiquinho, e mais alguns moradores, mas tentava não transparecer preocupação, cuidando da lida normalmente. Retornava à casa grande da fazenda Ingá, quando avistou um mensageiro de Acari.

Acompanhado por Dr. Chiquinho, recebeu a notícia de que policiais do Governo do Interventor Mário Câmara estavam bebendo na cidade e afirmavam que iriam se certificar da coragem do filho de Lamartine.

Os ânimos na época da eleição ficavam bastante exaltados, principalmente no interior, e ainda mais, em virtude de o Partido Popular ter conseguido maioria no primeiro pleito. Apesar das anulações, as chances de Dr. Rafael Fernandes ter confirmada a sua vitória colocavam os municípios, onde se realizariam novas eleições e onde a oposição tinha claras possibilidades de vitória, expostos a todo tipo de coação.

Em janeiro ainda, os partidários do Interventor Mário Câmara espancaram o patriarca de Jardim do Seridó, Felinto Elysio de Oliveira Azevedo, na tentativa de impedir a realização de eleições suplementares. Ciente dessa situação, Dr. Otávio solicitou ao Dr. Tomaz Salustino, juiz da comarca de Currais Novos, um habeas corpus preventivo, que garantisse o seu livre trânsito.

Dr. Juvenal Lamartine, governador deposto na revolução, continuava exilado na Europa e seu filho despontava como um político promissor. Era muito benquisto em sua região e tinha grandes chances de seguir a carreira política de seu pai.

Assim que recebeu a notícia trazida pelo mensageiro, Dr. Otávio Lamartine refletiu um instante e pediu aos presentes que o deixassem sozinho com a família. Ele mesmo iria resolver a situação. Houve algumas contestações, mas ele insistiu e foi atendido.

A casa grande do Ingá, como era costume na região, situava-se numa posição privilegiada, num dos pontos altos da fazenda, virada para o nascente, quase de frente para o Bico da Arara, com uma bela visão dos arredores. Ainda de peitoral de couro, mal Dr. Chiquinho tinha deixado sua casa, Dr. Otávio, com os sentidos alertas, escutou o barulho de um automóvel graúdo aproximando-se. precavido, apanhou o habeas corpus, que tinha sido emitido dias antes, e foi ver do que se tratava, seguido por sua esposa, Dona Dinorah Cavalcanti.

O caminhão da polícia foi manobrar, enquanto os militares José Galdino e José Albuquerque, sob o comando do Tenente Oscar Matheus Rangel, desceram e dirigiram-se ao dono da casa, dando voz de prisão e pedindo que os acompanhasse. Dr. Otávio tentou argumentar afirmando que não poderia ser preso, pois dispunha de um habeas corpus que tentou retirar do bolso. Os militares revidaram e disseram que não poderiam prendê-lo, mas poderiam matá-lo. Nesse instante, Dona Dinorah tomou a frente do marido, tentando impedir que o levassem. Um soldado agarrou-a pela cintura, ao que Dr. Otávio reagiu, puxando uma pequena faca. Não teve tempo de esboçar mais nenhum gesto.

Dr. Chiquinho tinha acabado de chegar ao terreiro de sua casa, na fazenda vizinha e de mesmo nome, quando percebeu o barulho do caminhão, que não chegou a desligar o motor. Em seguida, o espocar de tiros reverberou nas serras, fazendo-o retornar rapidamente à casa de Dr. Otávio, acompanhado de Cipriano e Nana, seus moradores de confiança.

Deparou-se com uma cena chocante. Os soldados tinham partido, deixando para trás um corpo jazendo ensanguentado, morto arbitrariamente pelas mãos da polícia, exclusivamente por questões políticas. D. Dinorah agarrou-se ao marido inconsolável, com os três filhos pequenos, Thaiza, Jurema e Clóvis, testemunhas de uma ação crua e covarde.

No dia 13 de fevereiro de 1935, a notícia da morte do filho de Dr. Juvenal Lamartine propagou-se na velocidade da bala assassina. Um caixeiro viajante procurou, em Currais Novos, José Bezerra, amigo íntimo da vítima, a quem relatou todos os fatos. Foi como receber uma punhalada que o deixou atordoado, mas consciente das providências que deveria tomar. Armou-se de coragem e partiu imediatamente para Acari, município vizinho, em direção ao Ingá, já preparado para transportar o corpo de seu amigo.

Dr. Otávio seria sepultado em Natal, onde se encontrava sua mãe. José Bezerra conseguiu dois automóveis para o trajeto. Em um carro, seguiu com o corpo do amigo e com a viúva inconsolável. No outro, seguiram seus filhos, acompanhados de D. Chiquinha Dantas, irmã de D. Silvina.

A viagem não foi nada fácil. O ano era de bom inverno; chovia muito e as estradas barrentas estavam enlameadas. Durante o trajeto, José Bezerra refletia sobre sua dor e revolta. Ao seu lado, inerte, o amigo fiel, que compartilhava das mesmas ideias. Foram criados no mesmo ambiente árido e seco, juntos a um povo destemido, mas sem grandes perspectivas.

Privilegiados dentro desse sistema, tiveram excelentes oportunidades. Dr. Otávio tinha até feito curso no exterior e trouxera seus conhecimentos, a fim de tentar melhorar a qualidade do principal produto econômico da região, o algodão mocó, melhorando assim as perspectivas dos seridoenses. Era consciente das dificuldades por que passavam e tentava ajuda-los sempre que possível. Mas aos olhos da revolução, representavam o coronelismo, que se apoderou da região, por anos a fio.

O gaúcho Getúlio Vargas também fazia parte da classe dominante em seu Estado, lugar de terras férteis e produtivas, com clima favorável à agricultura. Utilizando o apoio dos militares, dos dissidentes das oligarquias mineira e gaúcha, da classe média e dos trabalhadores urbanos, que clamavam por melhores condições de vida e pela reformulação do sistema eleitoral, chegou ao Poder. Seu principal alvo era a classe agrária e lutava diretamente contra o coronelismo do sertão nordestino.

José Bezerra e Dr. Otávio faziam parte dessa classe e agora um deles era vítima dessa revolução. O que ficou se lamentava da situação, não podia aceitar impassível as mudanças ocorridas, era uma reação natural contra tudo o que se tenta modificar. A sua região iria ficar desprovida de um árduo defensor.

As condições de vida do Nordeste não podiam ser comparadas às do Sul. Aqui eram e são necessárias extensões maiores de terra para garantir a sobrevivência; no Sul, pequenas porções garantem o sustento. No Sudeste, a indústria passava a ocupar fatia importante da economia; aqui, ainda se tentava introduzir técnicas capazes de melhor a produtividade da agricultura, que respondia basicamente pela economia. No Sul, grande parte da população já era alfabetizada e podia reclamar os seus direitos; aqui a grande massa era analfabeta e os poucos que dispunham do acesso à educação eram responsáveis pelo rumo a ser tomado pelos demais. Muitos dos coronéis, que eram acusados pela revolução, nada mais eram que árduos defensores e protetores de seu povo, desprotegido e desassistido pelo Governo Federal. Aqui as transformações se processavam mais lentamente, no solo nem sempre acessível do sertão semiárido. Não era fácil modificar esse quadro, sendo para isto necessário um período de tempo. Certo de estar sempre dando o melhor de si, José Bezerra posicionava-se terminantemente contra a revolução, ainda mais numa hora como aquela, em que transportava um de seus melhores amigos, vítima de tal situação. Sentia uma dor profunda no coração.

A viagem prolongava-se. A noite chegou com a escuridão envolvendo o cortejo enlutado. Ao longe, vislumbraram a luz de um automóvel em sentido contrário. Fizeram sinal e tiveram que parar. De dentro do outro carro, desce o General Ulisses Cavalcanti, na época ainda Tenente, irmão de Dinorah e que viera com o intuito de transportar o corpo do cunhado. Com o clima hostil que se instalara, era preciso muito cuidado para efetuar o traslado. Lamentando o terrível incidente, consolou sua irmã e elogiou a coragem de José Bezerra, que nada mais fizera que seguir os seus próprios princípios.

Prosseguiram viagem e chegaram a Natal, numa noite terrível. Chovia muito e a cidade estava às escuras, em virtude da greve na Companhia Elétrica. Dona Silvina era um lamento só, com o filho morto e longe de seu marido.

No dia seguinte, as ruas de Natal encheram-se dos amigos e companheiros. Dr. Juvenal foi um grande incentivador da aviação e os aviadores vieram prestar a última homenagem a seu filho. Natal, por sua localização privilegiada, capital mais próxima entre a América do Sul e a Europa, fora palco das primeiras travessias sobre o Atlântico. Agora, o oceano e a situação política separavam pai e filho.

Os carcarás da política tinham subtraído do Seridó um filho forte. Dr. Otávio foi enterrado de peitoral, traje típico daqueles que campeiam nas matas retorcidas do sertão, protegendo-os dos espinhos do caminho. Junto foi seu habeas corpus, inútil para conseguir sua liberdade.


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